Procrastinação

Senta-te e escreve. Mas agora? Sim, agora mesmo. O prazo era até ontem. Hoje já era para estares a pensar em escrever para a semana. Eu sei disso. Vou escrever agora então. Escreve. Sobre o quê? Escreve qualquer coisa. Isso não é concreto. Escreve, sei lá, sobre isso, de não conseguires escrever nada. Boa. Vou escrever então. Vamos. Calma, preciso de consultar o WhatsApp. Consulta rápido e começa a escrever. Ok. Já está. Espera, espera. Estou a ficar com sono. Os meus olhos estão a fechar-se. Preciso de um café. Vou fazer um café rápido e venho escrever. Não acredito, não tenho café em casa. E agora? Vou só ao café. Antes disso, vou vestir-me. Onde pus as chaves do carro? Em cima do armário da sala. Obrigado. Não sei quem tu és, mas ajudas-me imenso. Vou rápido ao café. Vou e venho e a ideia surge pelo caminho. Tens que perceber que o café é fundamental para escrever. É essencial! Não é essencial, é fundamental: essencial é o batimento cardíaco estar em exata sintonia com as recomendações do médico, ou o amor. Mas também se escreve com amor. Escreve-se sempre com sofrimento, uma angústia que nos consome até ao último ponto. Mas pode-se escrever estando ao mesmo tempo doente? Se o John Fante conseguiu escrever romances completamente cego, apenas ditando para a sua mulher escrever, porque não? Que herói. Dá-me dez minutos. Já está. Voltei e estou de facto bastante mais desperto do que quando saí de casa. Bem, vou escrever. Escreve. Escrevo. Espera, bateram-me à porta. Vai lá ver, mas volta rápido. Era engano. Vamos lá começar isto. Tens que ir para secretária. Já está. Ligar o computador. Estou mesmo entusiasmado com isto. Estou só abrir o Word. Abomino esta letra. Apagar Comic Sans MS. Arial 16. Perfeito. Calma, calma. As margens são essenciais para a estrutura. Ok, acho que já está tudo. Estou a ouvir um barulho que vem da rua. Vou só ver se é o correio. Nada. Era uma criança a brincar com o seu cão. Os animais são os melhores amigos das crianças. É isso, vou escrever sobre animais. Talvez seja um tema que não interesse à maioria. Quem quer saber da minha opinião sobre os animais? Para isso têm Darwin. Fala sobre um homem que em certa altura da vida acorda transformado numa espécie de inseto monstruoso. Kafka já pensou nisso. Então escreve sobre um adolescente que tem dificuldade em pagar a renda e mata a sua própria senhoria. Sinto que nunca leste Dostoiévski. Escreve então sobre um jovem que se encantou com a visão hedonista de um aristocrata e que deseja vender a sua alma para garantir que o seu retrato, em vez dele, envelheça e desapareça. Como é possível não conheceres Oscar Wilde? Eu já penso no que vou escrever. Vou comer qualquer coisa porque escrever com o estômago vazio é como pintar uma bela paisagem a água. Agora sim, estou a cem porcento para escrever. Deixa-me só responder a uma mensagem importante no WhatsApp. Já que estou no telemóvel, dou só um saltinho no Instagram. Aquelas mamas não são dela, de certeza. Detesto kiwi com frutos secos. Quando é que esta começa a ler livros e deixa finalmente o Chagas Freitas? Bonitos gatos. Outras mamas. Ninguém lê livros ao mesmo tempo que lava os dentes, amigo. Outros gatos. Outras mamas. Ainda mamas. Bonita comida. Bela paisagem. Mais mamas. Ouve lá, vais continuar a perder tempo com isso ou vais escrever? Vou escrever claro. Tenho um texto para entregar. Não sei se o jornal vai publicar isto em tamanho 16. Vou diminuir para 12. Será que se enviar com tamanho 12, eles mudam para 16? Chega. Falta aqui música. Escrever sem música é-me completamente impossível. Agora sim, sinto-me inspirado. Esqueci-me de desativar as notificações do computador: “3 maneiras de mudar a vida com este gel que aumenta o seu pénis mais 5 centímetros”. Bloqueou. Apareceu o Kid Bengala e não consigo desligar isto. Nunca mais empresto o computador ao meu pai. O PC ficou com vírus. Calma, afinal foi só um susto. Vou mesmo escrever. Escreve. Espera aí, o Gregório Duvivier tem um texto sobre procrastinação que por sua vez diz que a Ellen Degeneres também tem um. Vou só pesquisar isso para não copiar involuntariamente. Ok, mas rápido. É só por precaução. Está bem. O texto dele é maravilhoso. O texto dela é de uma inteligência soberba. A escrita está um pouco estranha, mas deu para perceber. A escrita está assim porque traduziste no Google Translate, palerma. Talvez seja por isso, sim. Vou beber outro café. Estou a ficar com sono. Mas se beber não durmo mais hoje. Recebi agora outra mensagem no Whatsapp. Estão a convidar-me para ir ao cinema. Talvez aceite. A ideia poderá surgir daí. Segundo o mestre John Cleese, as pessoas operam em dois modos: fechado e aberto. O modo fechado é aquele na qual a maioria das pessoas estão durante o trabalho, preocupados com os seus afazeres. Neste modo temos aptidão para sermos impacientes, stressados, mas nunca criativos. Já o modo aberto é aquele em que estamos mais relaxados. Diz ele que estamos mais perto de ser criativos deste modo. Muito bem. Talvez não vá e fique aqui a escrever. É isso, vou escrever. Boa. Começa. O que é que ainda estás a fazer no WhatsApp?

Herman José