Como entrada, oferecemos spoilers para o filme The Menu (2022), iguaria protagonizada por Anya Taylor-Joy e Ralph Fiennes, realizada por Mark Mylod e escrita por Seth Reiss e Will Tracy; no entanto, isto não é uma crítica do filme.
Quem já viu o filme sabe como termina. E, independentemente do quão bem conseguido o final possa estar, é fácil perceber algo: Margot, a personagem da Anya, sobrevive apenas porque não pertence à classe de quem lá ficou. Numa espécie de comentário social sobre a banalização da restauração e da confeção culinária, a apatia do cliente por quem o serve e o declínio da qualidade de vida no trabalho, o filme acaba por desfazer o velho provérbio “quem corre por gosto não cansa”, dizendo “cansa sim”. E eu consigo relacionar-me com isto – até certo ponto, claro.
Há vários anos que trabalho em restauração para ganhar uns trocos e faço-o através de uma empresa de recursos humanos. Isto significa que viajo pelo país, quase, tendo já feito serviços nos distritos de Vila Real, Porto, Aveiro, Coimbra, Bragança, Guarda, Viseu; recebo à hora mas trabalho sem horário de saída, (alguém ter) viatura própria é uma necessidade mas nem todos os sítios pagam trajeto e é comum demorar-se até duas horas para chegar ao trabalho e mais duas para chegar a casa – de carro ou não, após horas de trabalho nos dois dígitos, às tantas da noite, para dormir sequer metade do aconselhado medicamente e acordar para ir trabalhar a 50 km de casa e a mais de 100 do local do dia anterior. Isto tudo para dizer o quê? Que, agora que penso nisso, não me lembro de alguma vez ter feito um serviço em Braga…
E que, para todos os efeitos, possuo certas regalias sobre o pessoal da casa. Poderei: ganhar melhor à hora, trabalhar menos – tanto em horário como em carga –, receber (mais) por levar o carro e, acima de tudo, nunca mais voltar a pôr os pés naquele local – acreditem, isto sabe mesmo bem. Mas há algo que não escapa a nenhum colaborador – péssimo termo, já agora –: o respeito e a simpatia dos clientes para connosco.
E, ao longo do filme, por entre os monólogos do Chef (Ralph Fiennes), as critiques da Lillian (Janet McTeer), os comportamentos do Tyler (Nicholas Hoult) e mais, apercebemo-nos que não há respeito nem pelo funcionário, nem pela confeção, nem mesmo pelo Chef. Situações como “Ó menino!”, estalar os dedos, “Como assim tem de fechar?”, “Faça aí um descontozito” e “Isso é trabalho deles!” continuam bem normais, já para nem falar das ocasionais situações de assédio, tendo eu também já passado por isso. Nas palavras do guionista Seth Reiss, [w]e don’t really take a moment to think about how hard it is to produce that content [toda a experiência da restauração] and to be thankful for the people who do produce it. E isto cansa.
Então, como acaba Margot por sobreviver? Fácil: Margot relembra o Chef do quão bom, satisfatório e saudável é cozinhar e servir quem diz “Obrigado” quando se serve a refeição, quem se desvia para o empregado – termo correto – pousar ou levantar a mesa, quem organiza os pratos e demais utensílios no final da refeição. Porque é, de facto, o nosso trabalho fazer tudo isto, mas sabe bem sentir respect for people who do that line of work who deserve to do it with dignity – guionista Will Tracy. São raros os filmes em que, no final, quem ganha é quem não “sobe na vida” mas precisamos de mais deles.
Como buffet de ceia, temos o agradecimento por terem lido até aqui. Temos também a garantia de que o filme não é uma peça artística marxista, não obstante a clara divisão de classes e o final da classe elitista; o aviso de que o filme fala de muita mais coisa do que eu falo aqui e que vale a pena ver; e, para terminar, a informação de que existe um parágrafo para cada prato (geralmente) servido num evento – entrada, sopa, prato de carne, corta-sabores, prato de peixe, sobremesa e ceia. Bon appétit!
Joaquim Duarte