Mafalda

Mafalda

Depois de assistir a um espetáculo do Bruno Nogueira (quase obrigada pelo meu namorado) saímos de lá com a ideia de que o humorista teria abusado numa piada. Contou uma experiência vivida com a filha, que criou algum desagrado nos espetadores – tê-la levado consigo aos balneários masculinos, após uma ida à piscina. Uma vez que a criança ainda precisava da ajuda dos pais era necessário entrar com ela no balneário, quer fosse nos femininos ou nos masculinos. Tendo em conta que seria visto de “muito mau gosto” um homem adulto entrar num local íntimo onde se encontram mulheres despidas, viu-se obrigado a levar a filha consigo para o seu respetivo balneário. Até aqui tudo bem. O que nos deixou incomodados foi a posterior piada referindo que a criança teria visto uma grande quantidade de pénis naquele dia. Ok, trata-se de uma criança. Ok, é A Filha do humorista. “Foi de mau tom fazer uma piada deste género usando a própria filha”, comentavam as pessoas. Mas já passado algum tempo após o espetáculo, eu continuava a pensar nisto. E, de facto, a piada ganhou o seu sentido. O objetivo não era fazer humor com a situação. Era usar o humor para pôr as pessoas a pensar na situação. Nunca fui muito fã do humorista, mas ainda bem que me deixei influenciar e fui. Ainda bem que o ouvi e deixei mudar a minha opinião.

Depois de a minha mãe decidir que não gostava de ser mãe fiquei ao encargo do meu pai. Tinha apenas dois anos, mas já podia considerar-me a sua grande responsabilidade. Não tivesse ele de se tornar pai e mãe em tão pouco tempo.

Agora, com 24 anos, recordo bastantes vezes o longo caminho que percorremos até eu ser crescidinha suficiente para me desenrascar sozinha.

O preconceito foi o pior. Foi mais doloroso passar por toda a fase de bullying do que aceitar que não tinha uma mãe como o resto dos meus colegas. Ouvi mais de cem vezes num ano a mítica frase “Não se sente saudade do que nunca se teve”. Desenganem-se! Sente-se sim, e muito. Mas, na verdade, acabas por aceitar e dar ainda mais valor a quem cuidou de ti uma vida inteira sozinho.

Não quero comparar casos, muitos menos exaltar o meu em relação ao de alguém, mas ser filha de um pai solteiro é um verdadeiro teste aos limites psicológicos do ser humano. A desigualdade de género existe e é a realidade de muitas crianças nesta situação. Se és uma menina e a tua mãe é solteira, podemos dizer que tens sorte (dentro do possível). Se és menino e a tua mãe é solteira, já é um pouco mais complicado. Sentes o olhar de pena de cada pessoa que está ao teu redor. Por que és um rapaz que nunca terá um pai para falar de coisas de homens. Por que és inferiorizado por seres criado apenas por uma mulher (nem é preciso explicar a fama que a mulher tem, a criança será uma pessoa frágil e insegura, de certeza). E bem, se fores uma menina e o teu pai for solteiro, senta-te e prepara-te para uma vida, de veras, complicada. Comecemos por um terço das velhotas da aldeia acharem que o teu pai, uma vez que não é casado, vai acabar por abusar de ti e tornar-te a mulher da casa. Falemos também de acharem que, por ser homem, não é suficientemente capaz de fazer as lidas domésticas. E da pressão dos amigos para arranjar uma namorada que cuide da filha. E dos dilemas que enfrentou até hoje.

Desde pequenina, o meu pai tentou dar-me tudo aquilo a que não teve direito enquanto criança. Os tempos eram outros e as condições financeiras não permitiam fazer grandes atividades além da escola. Com isto, inscreveu-me em aulas de natação. O que devia ser uma boa oportunidade para mim, acabou por se tornar num pesadelo. Com apenas cinco anos ainda dependia da ajuda do meu pai para me vestir e, sendo assim, entrava com ele nos balneários para que pudesse vestir-me. O problema começou exatamente aí. Estava fora de questão entrarmos nos balneários femininos porque as senhoras não queriam um homem no mesmo espaço que elas e as suas filhas, o que é legítimo. Isto tornava obrigatório (e sem outra hipótese) a minha visita aos balneários masculinos. Sinceramente não consigo decidir quem se sentia mais constrangido naquele lugar – eu, pelas questões óbvias, ou o meu pai, por me sujeitar àquela situação.

As aulas não duraram mais de um mês. Como se não fosse suficiente todo aquele constrangimento, ainda ouvia piadas recontadas pelas outras crianças. Sim, recontadas. Eram apenas o reflexo do que ouviam em casa. Ninguém nasce a saber fazer comentários maldosos.

Muitas vezes, algumas crianças mais atentas e inocentes, perguntavam-me “como é ter só um papá”. A verdade é que poderia ter uma infância diferente, sim. Mas não melhor do que a que tive. Fomos habituados a ter duas pessoas como progenitores e, claro, isso fez-se sentir ao longo da minha vida. Dentro do meu seio familiar tudo foi o mais normalizado possível, o problema sempre veio de fora. Eram as pessoas que me faziam sentir diferente. Questionavam o porquê de não ter mãe, atribuiam a culpa ao meu pai e deixavam bem explicíto que “uma criança assim nunca terá um bom futuro”.  Sempre me fizeram sentir que faltava ali alguma coisa, mas não foi por isso que tornaram a minha infância ou adolescência mais pobre. Tive a sorte de ter como pai uma pessoa que fez, e faz, tudo por mim. E isso é o suficiente.

Alexandra Fonseca