Já alguma vez te perguntaste o que acontece quando os desejos fogem do convencional e começam a dominar a vida de alguém? A sexualidade humana é um universo vasto, repleto de nuances e particularidades que tornam cada pessoa única. Mas enquanto algumas preferências apimentam romances e histórias, outras podem tornar-se obsessões intensas e difíceis de controlar, que causam sofrimento e levantam questões sérias sobre saúde mental e limites éticos. É aqui que entram as perturbações parafílicas, um tema tão intrigante quanto essencial de compreender.
Desde logo, é necessário fazer uma distinção clara entre os termos “parafilia” e “perturbação parafílica”. O primeiro envolve excitação sexual e comportamentos marcados por impulsos e fantasias intensas e recorrentes, que envolvem objetos atípicos, atividades ou situações invulgares, como por exemplo, crianças, animais ou cadáveres (Perrotta, 2019). Já o segundo termo corresponde a uma parafilia que está a causar sofrimento ou prejuízo ao indivíduo ou a uma parafilia cuja satisfação implica dano ou risco de dano pessoal a outres (APA, 2013). Logo, uma parafilia é condição necessária, mas não suficiente para que se tenha uma perturbação parafílica, e por si só, uma parafilia não requer necessariamente intervenção clínica, uma vez que as atividades sexuais não constituem parafilias simplesmente porque parecem incomuns para outra pessoa ou profissional de saúde (Perrotta, 2019).
De acordo com o DSM – Manual Diagnóstico e Estatístico de Perturbações Mentais, existem vários tipos de perturbações parafílicas, sendo que as principais são: Voyeurismo, Frotteurismo, Exibicionismo, Sadismo Sexual, Masoquismo Sexual, Pedofilia, Fetichismo e Travestismo (APA, 2013). Estes distúrbios mentais afetam quase exclusivamente a população masculina, com exceção da perturbação de Masoquismo Sexual em que há alguma prevalência na feminina (Caldeano, 2016). A nível mundial, a prevalência, apesar de não ser totalmente conhecida, é reduzida. No entanto, estudos apontam que esta poderá ser superior ao número de casos diagnosticados e as parafilias que mais prevalentes são: Sadismo Sexual, Masoquismo Sexual e Fetichismo. Ainda assim, em termos criminais, há uma maior incidência de Pedofilia, Voyeurismo e Exibicionismo, que são puníveis por lei (Caldeano, 2016).
Em relação aos distúrbios mais prevalentes, a perturbação de Sadismo Sexual consiste na excitação sexual intensa por incutir sofrimento físico ou psicológico noutros indivíduos que não o consentem, manifestada por impulsos que causam prejuízo no funcionamento da vida da pessoa (APA, 2013; Caldeano, 2016). A perturbação de Masoquismo Sexual define-se pelo interesse sexual de qualquer forma de sofrimento próprio e envolve a submissão a une parceire. Nesta perturbação, alguns comportamentos adotados, como a asfixiofilia (restrição da respiração para provocar excitação sexual) podem levar à morte acidental. Por último, a perturbação Fetichista caracteriza-se pela atração sexual recorrente por partes não genitais do corpo, por objetos inanimados ou até por uma combinação de fetiches que causam disfunção em várias áreas da vida (Caldeano, 2016).
No geral, as perturbações parafílicas resultam de uma interação complexa de fatores biológicos, psicológicos e sociais. Entre os fatores biológicos, destaca-se o papel dos neurotransmissores, como a serotonina, a epinefrina e a norepinefrina, na modulação dessas condições, embora os mecanismos envolvidos ainda não sejam totalmente compreendidos. Estudos também apontam para alterações estruturais em determinadas áreas do cérebro de indivíduos com parafilias; contudo, não está claro se estas alterações são a causa ou a consequência dos comportamentos observados (Fedoroff, 2008; Fisher & Marwaha, 2022). Outros fatores biológicos que podem contribuir incluem condições médicas, como tumores cerebrais, epilepsia, infeções neurológicas prévias e lesões traumáticas no cérebro, que podem afetar o funcionamento cerebral (Požarskis & Požarska, 2023).
Do ponto de vista psicológico e social, traumas na infância, como abuso físico ou sexual, têm sido frequentemente associados ao desenvolvimento de algumas parafilias (Saladino et al., 2021). Certas manifestações, como o sadismo sexual, mostram correlações com traços de personalidade psicopática ou com perturbações psiquiátricas, como esquizofrenia e depressão, embora nem todos os estudos confirmem essas associações (Gurvinder, 2013, as cited in Požarskis & Požarska, 2023).
A interação entre predisposições neurológicas, traumas psicológicos e influências ambientais cria um quadro complexo e ainda pouco compreendido. As parafilias também levantam questões sociais, especialmente quando entram em conflito com normas legais e éticas, resultando em situações como aprisionamento ou acusações criminais.
Para ês profissionais de saúde, essas condições trazem dilemas éticos, como equilibrar a confidencialidade dê paciente com a necessidade de proteger terceires em casos de ameaça de violência ou autolesão. A solução passa por decisões ponderadas em que a segurança pública e a confiança dê paciente devem ser cuidadosamente equilibradas. Qualquer divulgação de informações deve ser mínima e justificada apenas em casos de perigo iminente (Yakeley & Wood, 2014). Portanto, é fundamental encontrar um equilíbrio entre a proteção de potenciais vítimas e a garantia dos direitos das pessoas com estas perturbações, destacando a importância de uma responsabilização legal complementada por intervenções terapêuticas adequadas.
Todavia, a compreensão e a classificação das parafilias não se restringem a uma análise biológica ou psicológica, dado que estas são profundamente influenciadas pelo contexto cultural e social em que estão inseridas. Bhugra et al., (2010) afirmam que o que é considerado uma prática sexual “normal” ou “patológica” varia consoante a sociedade, sendo determinado pelas normas, valores e convenções culturais vigentes em determinado período histórico. No caso do fetichismo, por exemplo, este pode ser mais tolerado em determinadas culturas, enquanto outras práticas, como a pedofilia é quase universalmente condenada. Portanto, a definição do que constitui uma parafilia e a sua avaliação social estão, assim, sujeitas às mudanças nas normas sociais e legais que regulam o comportamento sexual em cada época (Ayonrinde, 2014).
A representação das parafilias na mídia e na arte exerce também um impacto considerável na construção dos estigmas sociais e na perceção pública destas práticas. Frequentemente, em filmes, literatura e outras formas de expressão artística são abordados comportamentos sexuais não convencionais de maneira sensacionalista, o que pode contribuir para a distorção da realidade desses comportamentos. Um exemplo notório é a saga “Fifty Shades of Grey”, que apresenta a prática BDSM (Bondage, Disciplina, Sadismo, Masoquismo). Embora a obra tenha sido um êxito comercial, também foi alvo de controvérsia, nomeadamente no que diz respeito à forma como as dinâmicas de poder, consentimento e abuso são retratadas. A crítica recai sobre a possível banalização de práticas que envolvem risco físico e psicológico, apresentando-as, por vezes, como aspetos romantizados de uma relação consensual, sem a devida reflexão sobre as implicações éticas e emocionais dessas práticas (Linville, 2022). Contudo, a abordagem dessas temáticas pode contribuir para uma maior visibilidade de práticas sexuais alternativas, desde que seja de forma responsável, evitando a perpetuação de estigmas e permitindo uma discussão pública mais ampla sobre o consentimento e os limites do comportamento sexual.
Em síntese, adotar uma abordagem empática e científica que permita compreender a diversidade dos comportamentos sexuais, sem estigmatizações ou julgamentos precipitados torna-se fulcral para o desenvolvimento de uma sociedade mais inclusiva. Não só é necessário mais investigação científica para melhor compreender estas condições como também o dever de aprimorar os métodos de diagnóstico e tratamento, distinguindo práticas consensuais de comportamentos de risco. Assim sendo, ês profissionais de psicologia atuam na educação e sensibilização desta temática, contribuindo tanto no apoio dês indivídues afetados como na promoção de uma reflexão mais ampla na sociedade, onde as questões relacionadas com as perturbações parafílicas sejam tratadas de forma ética e equilibrada.
Referências Bibliográficas
American Psychiatric Association [APA]. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorder (5th ed.). American Psychiatric Association. https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425596
Ayonrinde, O., & Bhugra, D. (2016). Paraphilias and culture. In D. Bhugra & S. Malik (Eds.), Cultural psychiatry: Understanding culture, mental illness, and mental health (pp. 185-198). Wiley. https://doi.org/10.1002/9781118799574.ch15
Bhugra, D., Popelyuk, D., & McMullen, I. (2010). Paraphilias across cultures: contexts and controversies. Journal of Sex Research, 47(2), 242-256. https://doi.org/10.1080/00224491003699833
Caldeano, A. R. R. (2016) Perturbações parafílicas no séc. XXI [Master ‘s thesis, Universidade da Beira Interior]. Repositório Digital da UBI. http://hdl.handle.net/10400.6/5286
Fedoroff, J. P. (2008). Sadism, sadomasochism, sex, and violence. The Canadian Journal of Psychiatry, 53(10), 637–646. https://doi.org/10.1177/070674370805301003
Fisher, K. A., & Marwaha, R. (2023, March 6). Paraphilia. StatPearls – NCBI Bookshelf. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK554425/
Linville, J. (2022). Public perception of sexual paraphilias (Honors thesis, Ball State University). Ball State University. https://cardinalscholar.bsu.edu/bitstreams/bed8a714-4b6c-4ed1-b14f-c9b5d24dc504/download
Perrotta, G. (2019). Paraphilic disorder: Definition, contexts and clinical Strategies. Neuro Research 1, 1-15. https://doi.org/10.35702/nrj.10004
Požarskis, A., & Požarska, R. (2023). Socially Dangerous Sexual Paraphilias: Description of the problem. Proceedings of the Latvian Academy of Sciences Section B Natural Exact and Applied Sciences, 77(5–6), 217–225. https://doi.org/10.2478/prolas-2023-0031
Saladino, V., Eleuteri, S., Zamparelli, E., Petrilli, M., & Verrastro, V. (2021). Sexual violence and trauma in childhood: A case report based on strategic counseling. International journal of environmental research and public health, 18(10), 5259. https://doi.org/10.3390/ijerph18105259
Yakeley, J., & Wood, H. (2014). Paraphilias and paraphilic disorders: Diagnosis, assessment and management. Advances in Psychiatric Treatment, 20(3), 202–213. https://doi.org/10.1192/apt.bp.113.011197
Autor: NUPSI
Imagem: Érica Oliveira