Na véspera de Natal, um presente prematuro acaba de me chegar às mãos. Com 120 centímetros de comprimento, 80 de altura e uns poucos de largura, facilmente se auto denuncia como sendo um quadro. Envolto num papel de embrulho exageradamente extravagante, figura-se uma ilustração de uma noite de Natal em família que se faz revelar no exato momento em que a começo a desembrulhar.
À direita, uma árvore de Natal emite luzes incandescentes sob a quantidade inúmera de presentes que por baixo dela se acomodam. À esquerda, uma televisão emite ininterruptamente os mesmo filmes que, afincadamente, passaram nos anos anteriores. No plano central do quadro, uma mesa farta é rodeada por uma família sorridente, desde os mais velhos aos mais novos. No plano inferior, mesmo que numa perspetiva de proximidade e destaque, vagueia discretamente por debaixo da mesa a hipocrisia natalícia.
Com a consciência de que é uma farsa temporária e que não durará mais que dois ou três dias, tento ignorar e prestar atenção apenas aos pormenores do quadro que me confortam. A comida, os presentes, as gargalhadas. Mas a hipocrisia ali escondida, como quem não quer mostrar descaradamente que está sempre presente, consome tudo o que de bom vejo:
O Natal é vendido como uma época de confraternização, de união e de proximidade. Mesmo assim, durante todo o ano, é ignorado o índice irreverentemente elevado de pessoas solitárias; Já passamos o ano inteiro a correr exasperadamente atrás das contas; No Natal, pomos a aflição financeira de lado e esbanjamos as poupanças em desnecessidades banais que só nos farão passar o ano seguinte escondidos atrás de mais contas; A família está sempre presente na época natalícia mas facilmente é esquecida ou mal falada durante o resto do ano; E a solidariedade, que sempre abunda durante esta festividade, mostra-se praticamente inexistente e aparentemente desnecessária quando a solenidade do Natal termina.
Consumidos, superfluamente, pela falsidade natalícia, vivemos o ano na superficialidade e desleixe, para que chegue o Natal e possamos falsamente acreditar que todos os valores que pomos em prática nesta época são capazes de compensar a falta deles durante o resto do ano.
Envolvo, então, de novo, o quadro no papel de embrulho, agora amarrotado e um pouco rasgado. Desço as escadas até à cave onde se encontram enclausurados outros inúmeros quadros exatamente idênticos de anos anteriores. Pouso-o cuidadosamente e viro costas, pronta para ignorar a hipocrisia natalícia e viver o Natal da mesma forma mais uma vez.
Cristiana Mesquita