Ouço, desde pequena, que “quem não se sente, não é filho de boa gente”. Aprendi assim, cresci assim, na ideia utópica e romântica da vida, que tem tanto de bonito e estético como de caos e solidão, que tanto nos faz amar em verso como chorar em prosa. Porque as pessoas têm medo do exagero. As pessoas aprenderam a ter medo daqueles que são como a poesia e que pintam a vida com transparência, das pessoas que aprenderam a viver em analógico, no espontâneo e na bonita miopia de apreciar e ver a beleza nas pequenas coisas da vida, as pessoas aprenderam a fugir daquilo que alimenta as insónias nas noites frias de inverno e fizeram dessa aprendizagem premissa universal, tatuaram-no em todas as camadas de pele e de alma, em todos os suspiros e revirar de olhos. Hoje, têm medo, também, daquilo que as faz sentir vivas, têm medo das palavras e dos abraços, não colhem mel de lábios alheios e não dançam ao som de lengalengas que de ficção nada têm. Hoje em dia, num século em que se questiona a vulnerabilidade que está para nós tal qual oxigénio, quem sente em exagero conhece a solidão que vem sempre de mãos dadas com a incompreensão de não ter medo de espelhos ou de confrontos, que não se amedronta com dúvidas, mas que faz delas escudo ou fortaleza. São as dúvidas e a forma em como olhamos para elas que nos distinguem. A todos.
E está tudo bem.
Estas pessoas permitiram-se ser raras e viver como se raras fossem, mas é nessa raridade que encontram, a cada lágrima ou riso bem dado, a eternidade, nesta arte, que de subtil nada tem, de sentir em exagero, nesta permanente ausência de medo de julgamento e de questionamento.
Então, que se fale do medo! E que nunca se esqueça da sua importância.
Tenho medo de um dia não sentir saudades. Antes, eu tinha inveja das pessoas que não o sentiam, hoje só consigo ter pena. Porque neste mundo ou em qualquer outro não há mais nada que se poda dar a quem saudades não sente, sem ser conforto e pena.
E está tudo bem.
Não é possível ensinar a saudade como se de números se tratasse, não é possível sequer quantificá-la. Não é possível reviver neste mundo dos meros mortais que reclamam ainda a sua vivacidade, a saudade fatal que nos cantava Amália, porque não nos é, nem nunca nos será possível ensinar a arte de sofrer. Criaram-na, da forma mais dura possível, os poetas, que se fizeram soldados da solidão e da tristeza e transformaram lamentos singulares e pessoais em estrofes de versos que se vão alimentando do seu próprio reflexo em quem os lê. Não é possível fazer desta vida fado, como fizeram aqueles que viveram antes de nós. Que nos peça perdão a vida por nos ter retirado essa inocência e oportunidade de sermos quadra em toda e qualquer canção de Amália.
Há uns anos diziam-me que pedia demasiadas desculpas.
E está tudo bem.
Desculpem o desabafo, mas a verdade é que não mentiam quando o diziam. O quão vazia tem de estar a alma para que se peça desculpa pela forma em como somos e nos damos a este mundo? Não sei bem responder, com o tempo fui perdendo a capacidade de justificar os meus pedidos de desculpa e o próprio sentimento de culpa que me visita sem aviso ou convite prévio. Não conhece protocolos nem cortesia. Com o passar dos anos fui ganhando coragem de assumir esse meu jeito de autossabotagem de forma inconsciente, até que me apercebi de que não se pede desculpa pelo exagero. Ensinou-mo Shakespeare e Pessoa que, melhor do que qualquer outra pessoa, conhece a sensação de sermos um conjunto de plurais que aprenderam a apresentarem-se e a serem um só singular.
Abracei o exagero como se fosse um amigo dos tempos de escola, daqueles da turma de 90 que já não via desde o último verão do secundário. Abracei-o com força e não o deixei ir embora quando o relógio marcava as cinco horas. Agora, vive comigo e não dividimos a renda nem as despesas. Dividimos o prazer de viver, escrever e amar em exagero.
E está tudo bem.
Maria Filipe