Protagonizadas, respetivamente, com vista ao público do 9º e do 10º anos escolares de Vila Real, Auto da Barca do Inferno e Farsa de Inês Pereira passaram pelo Grande Auditório do Teatro Municipal nos dias 29 e 30 de janeiro. Contando cada uma com duas atuações, o Teatro encheu-se de jovens e professores da cidade.
Auto da Barca do Inferno
Assente na crítica à sociedade portuguesa da altura, esta obra de Gil Vicente foi representada originalmente em 1517. Retrata a passagem para o Paraíso ou para o Inferno das almas de diversas personagens-tipo através das discussões delas com um Anjo (Bibiana Mota) e com um Diabo (Silvano Magalhães).
“Demos-lhe uma tonicidade transmontada”, disse David Carvalho sobre a representação do Diabo, lembrando “o diabo de Vinhais, os Caretos” e demais folclore nortenho, pelo que a própria barca do Diabo remete para o paganismo. O encenador abriu a sessão presenciada (das 10h30), fazendo ainda menção a uma reunião com a Ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, a decorrer no final da atuação.
Perante as duas barcas expostas em palco – a infernal tingida em luz vermelha vívida e a angelical numa tranquila luz azul –, tanto o Diabo como o Anjo exponham os pecados e as virtudes das almas de acordo com a vida que haviam vivido. Seguindo fielmente o texto vicentino original, a atuação apresenta as personagens com alguns contornos modernos: o nobre fidalgo destaca-se um rico oportunista, o sapateiro mantém-se mas é também bêbedo, os representantes legais são agora uma só juíza, o judeu é recusado em ambas as barcas e os cavaleiros são, na prática, soldados da paz (ajuda humanitária, ONU) e bombeiros. Aliado a esta peça, juntam-se elementos como a projeção visual de uma autoestrada e canções modernas, inclusive música pimba, durante as atuações e as entradas em/saídas de cena das personagens.
A reação à peça mostrou-se positiva por entre alunos e professores das escolas Agrupamento de Escolas Morgado de Mateus, Liceu Camilo Castelo Branco e Colégio João Paulo II. Andreia Ribeiro, professora de Português no Liceu, considera a adaptação “interessante” e uma boa maneira de transmitir a obra aos mais novos, embora considere que a metáfora da autoestrada “já não faz muito sentido” e “devia ser mudada”.
Farsa de Inês Pereira
Original de 1523, a peça surge como resultado de um desafio feito a Gil Vicente para comprovar que não era plagiador. Assente no provérbio “mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube”, a obra conta-nos a história de Inês Pereira, uma jovem que deseja casar para poder sair de casa. Típico de Gil Vicente, a obra é uma crítica satírica aos costumes domésticos da sociedade portuguesa da altura.
A versão apresentada pela Filandorra decorre nos tempos modernos, com a presença de um rádio, de uma mota e de música pimba. Através desta obra, David Carvalho faz um apelo à prevenção da violência doméstica e à liberdade da mulher na vida pessoal mantendo “respeito absoluto ao texto”.
Ao longo de um único cenário a fazer lembrar as tradicionais casas portuguesas – além dos costumes, tradições e mentalidades –, Inês Pereira interage com diversas personagens de diferentes origens e ocupações que a incentivam a casar com o modernizado Brás da Mota; este, embora cumpra a maioria dos requisitos de Inês, maltrata e proíbe a protagonista de sair de casa. No entanto, Inês acaba por ficar viúva, contenta-se com o pouco inteligente mas bem-intencionado Pêro Marques e acaba por o deixar pelo Ermitão, o amor de infância dela.
A atuação foi bem recebida pela plateia. Leonor Queirós, aluna do 10º ano da Escola Secundária São Pedro gostou da adaptação e afirma que “a ver, [os alunos] conseguem interpretar melhor” a obra escrita. Esta opinião é partilhada por Eugénia Paula, professora de Português na Morgado de Mateus, cuja peça lhe é “uma adaptação muito, muito bem conseguida”, que “consegue trazer ao palco contemporaneidade” e que ajuda os alunos na “compreensão da obra” e “os motiva a ler” perante a “adversidade” do Português arcaico.
Contemporaneidade da Filandorra
Representadas pela Filandorra desde – respetivamente – 2002 e 2015, estas peças possuem “componente pedagógica” e são continuamente atualizadas “no espaço e no tempo modernos”, lê-se na sinopse do Auto, enquadrando-se no Serviço Educativo do Teatro Municipal de Vila Real.
Em conversa com o Torgador, David Carvalho realça o respeito pelo material original de Gil Vicente mas, simultaneamente, a possibilidade de “reinventar, como os mestres de cozinha, tudo”. Lembra quando o Diabo do Auto foi interpretado “pela Débora, no feminino”, destaca a influência do “Diabo de Vinhais” no atual Diabo do Auto e de Manu Chau no atual Parvo, localiza a Farsa nos anos ’80 do século passado e defende a importância de visitas culturais teatrais, inclusive “treinam-se, enquanto pessoas, espectadores, para a literacia do teatro” os jovens.
Ambas as atuações contaram com as interpretações de Bibiana Mota, Sofia Duarte, Silvano Magalhães, Luís Pereira, Paulo Magalhães, Sinas Pereira e Vânia Milheiro; conta ainda com Rui Moura na Farsa. Já no backstage encarregaram-se Carlos Carvalho e Pedro Carlos (luz e som), Helena Vital e Anita Pizarro (figurinos e guarda-roupa), Cristina M. Carvalho (produção) e ainda Silvina Lopes (Comunicação/R. Públicas), além do já mencionado encenador David Carvalho.
A Filandorra possui ainda diversos projetos em movimento: o regresso da obra Para Além das Águas em março, uma adaptação da primeira peça criada por Luís de Camões, “As Bacantes” a envolver o Museu do Côa e a UTAD e, em mirandês e em Miranda do Douro, “Beleza de 25” para celebrações do 25 de abril.



© Carlos Cardoso