Eram tempos, agora memórias

Eram tempos, agora memórias

Fixas o olhar por entre as vastas pérolas que devoram o templo. Sobrevives. Contas todos os teus segredos, anáforas, vírgulas e pontos. Achas-te a fábula esquecida do Rei Sol. Refletes e pouco percorres trilhos ou caminhos.

Aguças o lápis negro, puxas a caneta já envelhecida pelo toque das tuas mãos e soltas, daí em diante, a última folha do teu bloco de mil novecentos e noventa e oito, ano onde já foste imensamente espelhado.

Pois, e agora? Dá-te tempo! A vida deixa-te refugiar e mal começa quando acabas.

Corres à procura. Divagas pelos teus papéis. Paras e atropelas as belas estradas em que passaste mais vezes do que qualquer um. Chegas e nem por isso anuncias a tua vinda, nem tão pouco a tua ida. Sim, tu hás de ir, hás de ir à alma daquela rola branca que te picou todos os dias antes de pensares em viver.

Coças dolorosamente a cabeça. O paladar adoça o sabor a mel, o mel da tia-avó, o mel que transgrediu de geração em geração. Cai-te o xaile, a tua única esperança, a tua última gota de orvalho.

Por acaso, ainda te lembras quando chovia desde a madrugada até ao assoalhar da noite? Rias-te sempre, rias-te como se o amanhã fosse hoje, como se fosse a nossa última estação, como se tudo desaparecesse em milésimas de segundo.

Restam-te os pontos cruciais do mapa geográfico em que viajaste. Sim, porque visitaste o grande mundo mesmo estando o dia inteiro enrolado num lençol azulado. Aquele cheiro ao armário que a tua mãe te ofereceu pelo teu aniversário.

Fugias sempre da realidade. Até dizias que te assombrava, que te levava para locais da tua mente nunca antes vistos.

Sabes que me confortava quanto te sentavas ao fundo do banco? O banco onde as tuas lágrimas choravam de tantas vezes sempre que o cachorro não aparecia. Ele, meio farrusco e desleixado, mas tu que nutrias tanto por ele, que mal te conseguia expressar o que achava. O conforto que, pacientemente, falavas pelo teu coração, por aquelas pisadas de vida longa e sabedora de tantas vivências.

Nunca te deixaste levar pela tua intimidade, sobre o quanto eras feliz a não o ser, sobre o quanto moías o teu próprio juízo para encontrar aquilo que sempre querias, sobre o quanto as tuas memórias escasseavam e não me apercebia.

Lá em baixo, havia uma cave! Quando descias as escadas já rotas pelos gatos de outros tempos, via o teu desânimo em estar cá, em estar ao pé dos teus bem-me-queres. Todas as cores envolventes faziam-te esquecer quem eras e a pureza do mundo lá fora.

Cresceste e nem te viste no palco da vida. No palco onde sorrias e coravas de cada vez que te aplaudiam. Agora aplaudem! Aplaudem de saudades daquilo que te compunha, daquilo que era somente teu e que, agora, é de todos. Esses teus desvaneios, caprichos, insistências e encantos fracassados.

Engoliste-te como velho rabugento e desesperado. Engoliste-te pelas tiaras da tua tetra-avó. Engoliste-te pelos ruídos das máquinas, pela tua própria vontade e sacio, pelas profundezas do oceano.

Queixavas-te que o oceano te deixava, afinal foste ser longínquo com ele.

Sentes-te um ponto de luz no fundo deste mar. Sentes-te parte das linhas do horizonte. Sentes-te leveza do rio corrente.

Foste-te embora e não disseste nada a ninguém. A morte deixou-te morrer.

Alberto Couto