A utopia de gente grande

A utopia de gente grande

Saí de casa carregada com a saudade instantânea de nada saber sobre os meus próximos amanhãs. Trazia comigo roupa quente para o inverno que se avizinhava e a sensação de que tinha deixado para trás tudo o resto. Vinha carregada de roupa, mas, ao mesmo tempo, estava despida.

Abracei a minha mãe e a minha avó. Disse-lhes, pela primeira vez, “até sexta”. Vi o meu reflexo precoce nas lágrimas que acompanhavam as palavras da minha mãe. É a pressa que esta vida tem de que as pessoas cresçam forçosamente, que deixem o conforto e se entreguem à sensação utópica de uma idade, maturidade e postura adulta. É o sair de casa aos dezassete e lidar com as saudades do “colo” da mãe, saudades de tudo aquilo que criticamos porque o tínhamos como garantido. Sabia que amanhã o despertador tocava às sete e meia e que, por volta das oito horas, o pequeno almoço estava na mesa. Sobre o meu amanhã, sei muito pouco, para não dizer nada. Sei que tenho um autocarro para apanhar, só não sei onde, nem quando. Sei que é suposto este desconforto desaparecer, só não sei como.

Foram dias, semanas e meses a matar a ideia de que seria suficientemente capaz de existir sozinha numa cidade diferente em que a única coisa que conhecia era o sentimento de nada conhecer. Olhava em redor e tudo o que via eram pessoas desconhecidas, caras que se foram tornando familiares e muitas delas tornaram-se, até, família. Foram semanas exaustivas, já só era escrava dos pensamentos e dúvidas que não me deixavam dormir. Aprendi a abraçar as olheiras de uma forma natural e sem culpa que, hoje em dia, parece até que não existiu nunca um tempo em que elas não lá moraram. Não faz mal, aliás, acho que faz parte da magia de toda esta estúpida utopia de gente grande trazer consigo marcas físicas e visíveis do cansaço para que toda a gente consiga ver que isto de agora, de um momento para o outro, ser gente grande, tem que se lhe diga.

São as contas para pagar, o aprender a cozinhar e a pressa de aprender, também, a gostar da minha calmaria e da minha ausência de vontade e necessidade de sair para me divertir e me sentir bem.

Saí de casa com a mala cheia de roupa, agora, sempre que lá volto, volto cheia de histórias para contar, pessoas de quem falar e só isso me faz parar e perceber a efemeridade de tudo o que somos e de tudo o que vivemos. A vida não é o comboio das sete, não espera por nós, não nos avisa que vai passar ou parar, obriga-nos a entrar na tentativa de prever o amanhã, o depois e obriga-nos, até, a lidar com o ontem, mas não nos desvenda nada. O que será, será.

Há um ano desidratava a minha alma porque ia sair de casa, do conforto e do conhecido, para me entregar de braços abertos à aventura de toda uma vida, para me encontrar no meu próprio sonho que sempre me pareceu longe e me assustou de tão perto que ficou. Foi tão rápido. Foi tão intenso. Foi. Já não é. E essa é a tristeza de crescer, saber que o ontem nos pertenceu, que foi nosso enquanto durou. Hoje, já só sobram memórias que nos permitem a breve felicidade de revivê-las, na nossa cabeça, ao compasso do nosso coração que se vai enchendo de amor e pertença, baseado na crença de que o amanhã será sempre melhor do que o ontem. Hoje, choro só com o pensamento precoce de um dia dizer adeus à cidade que me acolheu, às ruas infinitamente cheias de memórias, pessoas e momentos que vivem na eternidade do ontem.

Não há forma fácil de dizer adeus a quem nos deu tanto, quase tudo, o que somos hoje. Não há forma fácil de dizer adeus à Bila, tal como nunca houve forma fácil de dizer adeus a casa. São sinónimos.

Aos trezentos e sessenta e cinco dias mais trezentos e sessenta e cinco dias que ainda tenho para viver aqui.

Maria Filipe