Há livros que nos marcam. Lembro-me vagamente da primeira vez em que peguei n’“O Senhor dos Anéis”. Devia rondar o nono ano, eu era um jovem impressionável e ainda tinha o hábito regular de ler à cabeceira. Não lera “O Hobbit”, erro crasso para quem acha que a introdução à Terra Média deve ser gradual e em passos de halfling. No meu caso, o que me atraiu talvez mais para a obra terão sido as maldições e as injúrias perante, digamos em bons termos, o calhamaço gigantesco que é a trilogia. Posso dizer que só a introdução me assustou a ponto de me fazer atrasar a leitura. Só a descrição da erva-de-cachimbo, dos seus usos e da sua história tão específica fez-me ver que estava perante uma obra diferente de todas as que lera até então, um autêntico portento. Bem, pelo menos a capa era da Europa-América, com as clássicas runas nas bordas sobre a fita dourada. Muito fixe.
Terminei a história após um ano, e fiquei com saudades, saudades reais de quem deixa para trás uma terra à qual se habituou e acabou por amar. Felizmente consegui regressar mais tarde com “O Hobbit” e mais recentemente com “O Silmarillion”, um dos tomos afamados de J.R.R Tolkien que só me veio parar às mãos depois de muita espera e de gastos dispendiosos na feira do livro do Porto. Mas valeu a pena.
O livro, também editado pela Europa-América, trata dos Dias Antigos, antes do mundo ser mundo. Trata, também, da sua criação e dos jogos de poder, das batalhas, das histórias de amor e traição que se estabeleceram em Arda (a morada dos Deuses), em Beleriand, em Númenor e nas restantes regiões ocidentais da Terra Média. Primeiro havia Eru e Eru fez os Ainur do seu pensamento e através da música dos Ainur o mundo começou. Lentamente foi sendo preenchido pelas criações dos Valar, com o apoio dos Maiar, o seu séquito de semideuses, que juntamente com os primeiros constituíam os Ainur originais. Manwë cria as águias, Aulë forja os anões, Yavanna ilumina os Pastores de Árvores. Todo um cosmos se vai erguendo da vontade de pensamento dos deuses, que é, enfim, a vontade de Eru. Mas, como não podia deixar de ser, um mal poderoso espreita entre a folhagem das Duas Árvores. Melkor, o inimigo primevo, chamado Morgoth por Fëanor e seus filhos, lança-se à destruição de tudo o que é belo e puro e a sua presença negra não se abaterá durante as Eras seguintes, sendo a sua perfídia recuperada e seguida por Sauron, seu fiel servidor.
Seguem-se histórias e lendas que sobreviverão gerações: a vinda dos filhos de Eru, os elfos e os homens, a criação dos silmarils, o roubo destes por Melkor e a consequente rebelião dos Noldor, as inúmeras lutas contra o negro reino de Angband, no qual se inserem as épicas e muitas vezes trágicas histórias de Beren e Lúthien, de Túrin Turambar, da queda de Gondolin, entre tantas outras, tendo tudo terminado com a vinda dos deuses para a Terra Média para a batalha final, para a Guerra da Ira. Na segunda Era assistimos à ascensão e queda de Númenor. Segue-se a explicação da génese dos anéis de poder e alguns prenúncios da Terceira Era. “O Silmarillion” termina com as genealogias dos elfos e dos homens, irmanadas com um índice onomástico e um mapa que só alguém com memória fotográfica conseguirá evitar consultar a cada três linhas. As personagens são muitas, os ambientes são complexos, mas tal faz parte do estilo de escrita de Tolkien e da magia do seu mundo, um mundo que conquistou gerações após gerações, descendentes dos homens antigos que vieram habitar a Terra Média.
José Miguel Neves