Noite Feliz…

Noite Feliz…

“Ghetto Reality” é um álbum de 1969, composto e interpretado por Nancy
Dupree e um grupo de crianças de Rochester, Nova Iorque. Todo o álbum é uma
mistura de expressão musical, educação e consciência social, mas há uma música
que, para mim, se destaca: a faixa número 6, intitulada “I Want”. Através de uma
letra que questiona “O que queres para o Natal?”, esta canção passa uma
mensagem nítida de autoconfiança e reivindicação, expressando, em resposta, um
desejo de liberdade e afirmação de direitos: “Quero a minha liberdade!/Quero-a
agora!”. No fundo, o objectivo de Nancy Dupree era, através da voz de uma criança,
mostrar os problemas e as dificuldades que, neste caso, a comunidade afroamericana passava, adaptando isso ao contexto do Natal. Os tempos mudaram,
mas há coisas que se mantêm. Por cá até pode não haver ghettos, pelo menos no
sentido Americano, mas há na mesma zonas pobres, pessoas pobres que vivem
com dificuldades, e para as quais o Natal é apenas mais um dia.


Segundo dados divulgados recentemente pelo INE, há mais de 2 milhões de
pessoas em risco de pobreza ou exclusão social no nosso país. Isto significa que
18% da população vive apenas com o suficiente para sobreviver. A crise
económica, o aumento do custo de vida, a inflação e a precariedade laboral
agravam este risco, o que reforça a vulnerabilidade destas pessoas. Para além
disso, há também quem viva, de facto, em situações de pobreza extrema, entre os
quais os sem-abrigo e os desalojados, cujo número tem vindo a aumentar de forma
alarmante: se, em 2009, havia 2.133 pessoas nesta condição, os dados mais
recentes, de 2023, apontam para 13.128. Existem vários programas e iniciativas
estatais de combate a esta realidade, como a “Estratégia Nacional para a
Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo”, aprovada em 2024, e cujo
foco principal é, não apenas alojamento temporário, mas a inclusão social; o
programa “Housing First”, de 2023, que fornece suporte habitacional específico
para pessoas em situação de sem-abrigo, facilitando o acesso direto a habitação
estável, sem exigir condições prévias de “recuperação” ou “preparação”; e a “Lei
de Bases da Habitação”, queprevê o direito àhabitação e mecanismos de proteção
para cidadãos em risco de despejo ou sem moradia. No entanto, apesar dos
esforços e da boa-vontade, todos este programas são altamente falíveis, muito por
causa do sistema altamente burocratizado que está por trás deles, mas também
porque o foco está apenas em remediar e não em prevenir.


Ninguém nega que seja crucial retirar as pessoas que vivem na rua de lá,
mas garantir que mais ninguém fica nessa condição acaba por ser tão ou mais
importante que isso. Os problemas vêm da base: a crise na habitação, a falta de
rendas acessíveis (porque não, Sr. Primeiro-Ministro, nem no Luxemburgo 2300€
seriam uma renda moderada…), a precariedade laboral, mas, acima de tudo, as
dependências e os problemas de saúde mental. Os dados não mentem: entre 40%
e 60% das pessoas em condição de sem-abrigo têm doenças mentais
significativas. Porquê? Porque há uma falta de acompanhamento psiquiátrico,
consultas insuficientes, medicação descontinuada e, quer queiramos, quer não,
isto leva a uma marginalização destas pessoas, que não veem outra alternativa
senão deambular por aí e tomar a rua como cama. A verdade que, muitas vezes, o
apoio a estas pessoas vem de organizações não-governamentais, como o Banco
Alimentar Contra a Fome ou a Cruz Vermelha, cuja acção junto dos municípios, por
exemplo, contribui para a criação de alojamentos temporários, centros de
acolhimento e respostas sociais de emergência, mas tudo alicerçado na dedicação
e no apoio de pessoas anónimas com almas caridosas e vontade de ajudar o
próximo.


Não foi por acaso que escolhi a música “I Want” para introduzir este tema
que agora trago a debate, nem o próprio tema em si, mas por causa da época do
ano em que estamos. O Natal, sendo o festival do dispêndio em que se
transformou, é também o período em que as pessoas tendem a fazer uma reflexão
e a dedicar-se, mais do que em qualquer outra altura, ao altruísmo, à filantropia e
à bela da solidariedade. Muitos dirão que é um acto de hipocrisia, uma vez que, no
resto do ano, se descura este benevolente gene; outros dirão que representa uma
vitória do Capitalismo, que é o principal responsável pelas situações de carência e
pauperismo em que se encontram os sem-abrigo, mas que, ainda assim, sai a rir,
uma vez que quem tenta “colmatar” essas lacunas são os restantes cidadãos que
também por si vivem subjugados; mas o certo é que, na prática, estes actos, por
menores que possam parecer, representam o Mundo inteiro para estas pessoas
que nada têm. A parte triste é que, no dia 26, tudo volta à anormal normalidade de
desumanizar aqueles a quem ontem se deitou a mão…


Só este ano, as cinco maiores autarquias do país gastaram mais de 2
milhões de euros nas decorações de Natal. Para além da estranheza que esta
abolição temporária do princípio da laicidade do Estado me provoca, também
acaba por ser revoltante perceber que há um tão grande investimento em luzes LED
coloridas, mas não na garantia de que as pessoas que por elas vão ser iluminadas
têm sequer o que comer quando chegar a Consoada. Porque sim, a verdade é que,
se não fossem organizações como o já referido Banco Alimentar Contra a Fome,
muitos teriam dificuldade em garantir a sua alimentação básica. Mas falemos
disso: em Portugal, são desperdiçadas, anualmente, cerca de 2 milhões de
toneladas de comida. Enquanto isto, no último ano, o Banco Alimentar foi capaz
de, com a ajuda de 42.000 voluntários – espalhados por 2.000 superfícies
comerciais -, angariar 27.448toneladas de alimentos, que permitiram ajudar perto
de 380.000 pessoas com carências alimentares comprovadas. No Natal, ainda se
acentuam mais estas desigualdades, uma vez que a pressão do consumo, do
simbolismo da ceia e da família impõe um distanciamento ainda maior entre quem
come batatas com bacalhau e quem apenas precisa de um prato quente para se
aquecer naquela noite fria.


Felizmente, existem cantinas sociais e instituições que promovem refeições
solidárias nesta época, primando pela defesa da dignidade e da humanidade dos
sem-abrigo, que têm ali um lugar onde ainda se conserva uma réstia do espírito de
Natal que tanto se apregoa por aí. Fora da realidade sazonal, também existem, nas
grandes cidades, redes de apoio aos sem-abrigo como, por exemplo, o Núcleo de
Planeamento e Intervenção Sem Abrigo do Portoque, durante o ano de 2024, serviu
cerca de 278.926 refeições a pessoas nesta situação, o que, mesmo sendo
louvável e até emocionante, continua a não ser suficiente. Porque a caridade e os
abrigos temporários são um bom começo, mas a experiência internacional vem
mostrar que nenhum país conseguiu resolver o problema sem começar pelo
investimento na habitações permanentes. Existem 723 mil casas vagas em
Portugal, das quais só 485 mil estão em condições de ser habitadas. No entanto,
apenas metade destas (236.927) estão no mercado para venda ou arrendamento,
o que significa que há 248.534 casas vazias no nosso país que nem sequer
representam uma possível solução para a crise sem precedentes que se vive na
habitação. Aliado a isto, é bom que se comece a investir num apoio psiquiátrico de
qualidade, em centros de reabilitação e reinserção, no controlo das rendas e na
defesa do trabalho seguro e com dignidade (porque sim, Sr. Primeiro-Ministro, o
Pacote Laboral está feito apenas e só para responder às vontades dos patrões):
como eu defendia no início, é bom que se aposte, não só na resposta, mas na
prevenção.


Para terminar, propunha só um exercício: quando os senhores leitores
estiverem sentados à mesa, na Ceia de Natal, reflitam sobre este assunto. Olhem
pela janela, vejam o frio que se faz sentir na rua, e apercebam-se do quão sortudos
são e do quão incerta a lotaria da vida pode ser, porque ninguém está livre de, no
próximo Natal, estar na posição daqueles que hojeadormecem alumiados pela Lua
e pelos piscas vermelhos e dourados das árvores da Avenida, enquanto escutam,
nos altifalantes públicos, a melancólica melodia de um “Silent Night”. E, assim,
pode ser que a nossa empatia não seja descartada no dia seguinte, juntamente
com o papel-de-embrulho e as crenças no Sr. Noel…


Feliz Natal!

Guilherme Gomes