O tsunami do ano zero portista

O tsunami do ano zero portista

A época até começou com um triunfo brilhante na Supertaça, a dar uma sensação de qualidade que se revelaria falsa, em especial depois da derrota na Choupana, onde pior do que o resultado foram os sinais alarmantes de exibição, impedindo o FC Porto de saltar para a liderança da Liga, quase 1000 dias depois da última vez que foi líder isolado.

Foi o ponto de viragem dos azuis e brancos de uma possível época de sonho em plena transformação geral interna para um pesadelo que ganhou contornos de tragédia com a goleada sofrida em casa frente ao Benfica, no clássico do último domingo. 

Na quarta posição, em zona de Liga Conferência, e apenas com ambições de chegar ao último lugar do pódio, numa luta com o SC Braga que promete ser dura até ao fecho das contas, é tempo de começar a projetar a próxima campanha, em que não vencer algo de relevante é algo que não passa pela cabeça de qualquer portista.

Super Dragões (@fcporto)

A crise portista 

Ora, a crise em que o FC Porto está mergulhado é de muito difícil resolução. E um dos obstáculos mais complicados resulta da crença ilusória numa ideia feita: a de que no Dragão, como antes nas Antas, se ganhava porque se lutava mais que os outros, com mais raça, mais alma, o tal ADN de que muito se fala. Mas não. Não negando, porque ninguém pode negar, que há essa identidade guerreira entre os portistas e as gentes do Norte, o FC Porto ganhou mais que os outros porque, ao longo dos anos, por razões diversas, foi conseguindo construir equipas melhores que as dos rivais de Lisboa.

Como tal, produziu vitórias que garantiam a (re)construção de novas melhores equipas. Ora, o ciclo virtuoso que permitiu dominar em Portugal e brilhar na Europa com assinalável mérito surge agora como irrepetível, por fragilidades próprias, mas também porque o Benfica voltou a ser competitivo há década e meia e o Sporting saiu da letargia no último lustro.

Recuando um pouco atrás no tempo, vale a pena recordar que, na época anterior, que já esteve longe de ser um sucesso – o último FC Porto de Conceição só garantiu o terceiro lugar no derradeiro jogo em Braga e acabou a 18 pontos do campeão nacional Sporting CP – ainda havia no plantel gente como Taremi, Evanilson, Francisco Conceição, Galeno e Pepe, mais um Nico González a todo o tempo. Agora é o que se vê. O lote permite, apenas, um onze razoável, as alternativas não passam de sofríveis, e até os melhores jogadores parecem piores do que são.

Não invalida isto, por isso, que a época em curso esteja muito abaixo do mínimo exigível, desde logo porque, como é hoje evidente, o plantel é manifestamente insuficiente para a ambição do clube e claramente inferior ao dos rivais. 

Assim, em relação a esta temporada, a mesma foi começando por um mercado de verão que prometeu muito e entregou pouquíssimo, passando pela aposta falhada em Vítor Bruno, pela perda de peças-chave em janeiro, hipotecando, por completo, a época desportiva, e culminando num modelo de jogo progressista (isto é, mais bem vincado do que o de Vítor Bruno, embora o principal erro deste tenha sido a comunicação, tendo sido, nesse capítulo, totalmente o oposto à ideia que eu tinha do mesmo, uma vez que, entre outras coisas, “queimou” alguns jogadores em praça pública), mas que encontrabastante (até demasiada) resistência, o FC Porto apenas retira uma supertaça desta época. Ninguém reconhece o seu ADN e nem há uma única vitória sobre os rivais para ficar para a história.

O mercado de transferências e os erros de AVB

André Vilas-Boas (@fcporto)

Sejamos sinceros: o verão azul e branco até prometia um FC Porto competitivo. Com pouco dinheiro, parecia que André Villas-Boas tinha operado um verdadeiro milagre: Samu Aghehowa recusou outro tipo de patamares para se juntar à Invicta, Nehuen Pérez, pelas boas épocas que vinha protagonizando ao serviço da Udinese e até, anteriormente, em Famalicão, prometia suceder a Pepe enquanto comandante da defesa, Francisco Moura iria subir o nível nas laterais, Fábio Vieira, formado no clube,voltaria mais maduro, Tiago Djaló, visto como uma opção, no mínimo, razoável e válida, também reforçava a defesa, e Deniz Gul, mesmo sendo um projeto de jogador, prometia concorrência a Samu. Mas praticamente nada disto aconteceu.

Em jeito de escrutínio, Villas-Boas cometeu dois grandes erros. O primeiro erro foi na escolha de treinadores. O presidente estava obrigado a uma escolha criteriosa que lhe desse tempo para progredir tranquilamente na recuperação financeira. Isso não está a acontecer porque, apesar de os portistas compreenderem que o clube corria pelas ruas da amargura, em termos financeiros, a verdade é que não há tolerância para falhas estrepitosas na vertente desportiva. 

O segundo falhanço foi nas expectativas. O bom senso mandava baixar expectativas, dizer claramente que esta era o ano zero, que se faria o melhor possível, mas sem prometer títulos – e até foi isso que, por exemplo, Rui Pedroto fez, ao dizer que o clube estava no “ano zero”, havendo, também, aqui uma contradição na própria comunicação dos diversos dirigentes. 

Todavia, o próprio AVB sempre apontou à exigência do clube em questão e sempre disse que o objetivo desta direção era ser campeão nacional no primeiro ano de mandato, o que não irá acontecer. Além disso, sempre colocou, ingenuamente, as expectativas demasiado altas, tanto na Liga Europa, como em Martín Anselmi, nomeadamente na sua apresentação como treinador dos dragões, mesmo sabendo que a sua adaptação ao plantel, com todas as circunstâncias existentes, fosse ser extremamente difícil.

A próxima época 

Memorial a Jorge Nuno Pinto da Costa (@fcporto)

Ora, também é verdade que o mais interessado em tornar o plantel competente é André Villas-Boas, que terá de trabalhar com a direção desportiva a constituição de um grupo de futebolistas que encaixem nas ideias de Martín Anselmi, o treinador que já assegurou ser o homem do leme para 2025/26. 

O quadro financeiro está bem mais desanuviado, no entanto os investimentos devem ser feitos com algumas cautelas, pelo que a intervenção no mercado não poderá suportar erros de casting nem de scouting. 

Se a sua intenção for, como acredito, devolver o FC Porto ao domínio nacional e à competência na Liga dos Campeões, o presidente terá de se libertar de muitos destes jogadores. Não têm, simplesmente, qualidade para vestir a camisola azul e branca.

«No caso do Neuhén temos uma opção de ativar essa compra e estamos muito interessados em fazê-lo.» AVB revelou através do JN/O Jogo a intenção de adquirir em definitivo o passe do central argentino. Nehuén mereceu um investimento de quatro milhões pelo empréstimo e custará 13,3 milhões se Villas-Boas cumprir essa intenção. 

Será, na minha opinião, um dos piores negócios do FC Porto de que tenho memória. Neuhén é banal em tudo: no ar, na marcação, na leitura, na agressividade, na velocidade, na construção. Não tem condições para um FC Porto de elite, como não têm Tiago Djaló, André Franco, Gonçalo Borges, Zaidu, Grujic, …

A verdade é que a garantia dada por Villas-Boas sobre a continuidade de Martín Anselmi também o deixa, de certa forma, amarrado às ideias deste treinador. São interessantes? Sim. Ricas? Aparentemente. Boas? Só se funcionarem. E com estes jogadores está mais do que visto que não funcionam. E não será por mera teimosia que isso vai mudar.

De facto, Martín Anselmi, a despeito de uma comunicação(muito) interessante, não consegue dar solidez à equipa (defensivamente está mesmo muito frágil e o problema não é só individual – é, também, psicológico, talvez) e insiste numa roupagem tática que deixa desconfortáveis os jogadores. Em resumo, as individualidades estão longe de outros tempos e a qualidade tática não ilude o problema, muito pelo contrário.

O modelo de jogo

11 inicial do FC PORTO (@fcporto)

Relativamente ao jogo em si, que, esse sim, é que deve ser analisado (como diria Sérgio Conceição, é necessário falar mais de futebol e não do futebol), é difícil imaginar por onde pode ir o FC Porto de Anselmi se não procurar, citando Luís Freitas Lobo, outra “estrada tática” em vez desta, que parte de uma defesa a três, com o seu melhor “8”, Eustáquio, lá metido como central, com um meio-campo a dois, sendo um deles Fábio Vieira, e com Samu, um dos melhores avançados no ataque à profundidade, no arrasto da marcação e na descoberta de espaços, a procurar um jogo associativo e a pedir mais bola no pé para ligar com os colegas, mesmo sabendo que tem imensas limitações do ponto de vista técnico e motriz, designadamente quando se tem em conta este sistema pois me parece, como referi, que as suas melhores aptidões não estão a ser exploradas.

Aliás, a verdade é que nem Samu nem Deniz Gul serão os avançados ideais na ideia de Anselmi. Dito isto, e estando a escrever isto a seguir ao jogo frente ao Casa Pia, o turco vai deixando contributos valiosos a jogar de costas. Mostra-se em apoio, descarrega jogo, ganha duelos aéreos, dá aos médios para ficarem de frente. Menos feliz no momento de virar para a baliza, mas nota-se que há potencial. 

Continuando o meu raciocínio, aquilo que podia ter de criatividade no ataque perde-se numa anarquia de movimentos entre Mora e Pepê a tentar encontrar buracos, sempre em jogo interior, para furar atrás de Samu. Não se deteta um claro “jogo posicional” (isto é, criação de linhas de passe para combinações posicionais que ocupem e abram espaços a atacar) e, defensivamente, a equipa sobe tantos jogadores (inclusive os laterais num sistema 3-3-3-1), que fica desposicionada por diversas vezes, o que expõe a linha defensiva a um enorme desconforto defensivo, sendo que me parece que o rendimento de Diogo Costa também está longe de ser uma mera consequência do mesmo.

O compromisso relacional-operacional é bem mais evidente dentro do coletivo em comparação com o que se via com Vítor Bruno, mas, além da tensão inibidora própria a um jogo com tanta simbologia e peso histórico, é de realçar as limitações na hora de definir e, consequentemente, gerar situações para “concluir”.

O modelo de Anselmi trouxe maior serenidade com bola, é verdade. Emancipou alguns jogadores do receio em assumir o protagonismo e potenciou a autonomia de decisão, também é verdade. Contudo, no último terço, depende muito da capacidade dos talentos individuais em criar e definir adequadamente em função das possibilidades que oferece cada sequência para desestabilizar a organização contrária e conseguir materializar o domínio com bola.

No último fim de semana, perante um opositor como o Benfica, foi no limite do precipício, a equipa caiu desde o primeiro minuto.

O clássico não só foi ilustrativo da falta de nível competitivo do plantel do Porto, como expôs a nu os defeitos do sistema de Anselmi. Bruno Lage preparou muito bem o jogo e, sabendo que Anselmi privilegia superioridade numérica a sair a jogar, o Benfica raramente pressionou alto e quando o fez, Kokçu subia com Aursnes, forçando um três contra três perto da área portista, sendo uma das raras ocasiões onde o Benfica não pressionou exclusivamente em 4-4-2.

Estacionando-se num bloco médio, o Benfica não teve problemas em esperar pelo Porto e deixar que a equipa da casa assumisse a posse de bola e, em 90 minutos, o Benfica quase sempre fechou os caminhos da baliza e negou os espaços que o Porto procurava atacar: os corredores laterais.

Outro pormenor pernicioso foi algum desespero (ligado ao resultado) para concluir o quanto antes a jogada. Quer queiramos quer não, apesar de não ter efetuado praticamente mais nenhum remate à baliza do Benfica, a equipa portista teve jogadas em que caso o penúltimo/último passe tivesse saído certo, poderia ter criado muito mais perigo e marcar, pelo menos, mais um golo. 

Com isto, houve várias sequências de transições do Benfica onde quem recebia, nas costas dos que se tinham projetados sem pausa, podia encarar o jogo de frente, conduzir à vontade, fixar e usufruir de situações de paridade ou superioridade numérica, e foi precisamente assim que as águias atiraram umas três bolas aos ferros da baliza de Diogo Costa.

Martín Anselmi (@fcporto)

O futuro 

Logo, os jogadores não parecem adequar-se às ideias do treinador e, tal como no Manchester United FC, de RúbenAmorim, esta equipa parece necessitar de tempo para construir um plantel adequado as ideias de Anselmi. Porém, quanto tempo? Quanto tempo estão os adeptos portistas dispostos a esperar por um melhor futebol e consequentemente por títulos? Depois vamos ao debate do momento: o treinador tem de se adaptar às características dos seus jogadores ou são os jogadores que têm de adaptar às ideias do treinador?

Neste caso, depende da direção portista, da sua paciência, mas também dos adeptos. Adeptos esses que têm uma cultura, talvez demasiado, resultadista, que oferecem pouca margem para o erro. Pergunto-me o que se fará neste plantel se Anselmi continuar. Mas pergunto-me ainda mais o que Anselmi fará se continuar com este plantel. 

Mas agora lanço ainda outra questão: se o FC Porto apostar num plantel para o 3-4-3 de Anselmi e as coisas correrem mal e o argentino acabar por ser despedido precocemente, que treinador o FC Porto poderá contratar? Avançará para um que adote ideias semelhantes ou irá alterar novamente para um com ideias contrárias? Anselmi deu a entender que o FC Porto o contratou por ter ideias diferentes do seu antecessor, mas se Anselmi falhar quais serão as ideias do seu sucessor? O FC Porto pode (ou deve) alterar de treinador e de ideias conforme for falhando? Não me parece, sinceramente, que seja uma decisão fácil de tomar nem um caminho fácil de percorrer, mas também não acho que essa seja a melhor solução.

Em suma, o que que aconteceu foi que, depois da conquista da Supertaça, o FC Porto entrou num estado de esperança relativamente infundada (ou, melhor, até houve fundamento, houve chance, mas não foi agarrada) quando não havia nada consistente para tão novos feitos. AVB não foi capaz de colocar água na fervura e agora a desilusão é muito maior. Se há característica fundamental na condução de uma grande instituição é a frieza, o calculismo e a capacidade de previsão de eventuais imponderáveis. Porém, AVB parece mais um adepto do que um líder. E, a continuar assim, as saudades de Pinto da Costa irão aumentar rapidamente.

VOZ DE BANCADA.

Texto: Raúl Saraiva