Num mundo dominado por padrões estéticos idealizados e validação constante através da imagem, a Dismorfia Corporal (DC), também conhecida como Perturbação Dismórfica Corporal emerge como uma manifestação silenciosa, mas crescente, de sofrimento psicológico. Longe de ser mera vaidade, esta condição reflete como fatores culturais, cognitivos e tecnológicos distorcem a perceção que temos de nós próprios (Rück et al., 2024; Kiarie & Gathuci, 2025).
A DC é então uma perturbação psiquiátrica caracterizada por uma preocupação intensa e persistente com supostas imperfeições físicas – geralmente mínimas ou inexistentes para os outros. Esta preocupação conduz frequentemente a comportamentos repetitivos, como observação compulsiva ao espelho, cuidados excessivos com a imagem, dietas restritivas e comparações constantes com terceiros (Rück et al., 2024; Rossell, 2022). Quanto maior a convicção na existência dessas imperfeições, maior tende a ser o sofrimento (Anson, et al., 2012)
Esta perturbação manifesta-se sobretudo na adolescência e início da idade adulta – fases marcadas por mudanças físicas e elevada pressão social, frequentemente amplificadas pelas redes sociais (Trichas et al., 2025). As zonas do corpo alvo de maior preocupação incluem rosto, nariz, pele e cabelo. Em termos de especificidades de sexo, 50% das mulheres referem os seios como a principal fonte de insegurança, enquanto 57% dos homens mencionam os genitais. Nestes últimos, destaca-se a dismorfia muscular – uma sensação de inadequação física apesar da boa forma, levando a treinos excessivos, dietas extremas e uso de esteroides. Procedimentos estéticos, contrariamente ao esperado, raramente aliviam os sintomas da perturbação (Trichas et al., 2025).
As comorbilidades são frequentes e incluem fobia social, depressão, perturbações de personalidade, consumo de substâncias e ideação suicida. Cerca de 22% dos indivíduos com DC relatam tentativa de suicídio pelo menos uma vez. O diagnóstico é dificultado pelo sentimento de vergonha, mas existem tratamentos eficazes, nomeadamente a terapia cognitivo – comportamental (TCC) e os inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRS), que contribuem para a redução dos sintomas e na melhoria da qualidade de vida (Rück et al., 2024; Trichas et al., 2025).
Importa distinguir a DC da insatisfação corporal (IC), que é uma avaliação negativa da aparência, comum sobretudo na adolescência. Apesar de poder causar sofrimento, a IC não implica obsessões nem disfunções severas e não configura, por si só, uma perturbação clínica. No entanto, pode estar associada a baixa qualidade de vida e a outras condições como perturbações alimentares e, em alguns casos, evoluir para DC (Cerea et al., 2022; Mueller et al., 2024).
As causas da perturbação não são totalmente conhecidas, mas acredita-se que resultem de uma combinação de fatores genéticos, psicológicos e ambientais, afetando homens e mulheres de forma semelhante. Ter familiares com DC, depressão ou perturbação obsessivo-compulsivo aumenta o risco de desenvolver esta perturbação. Experiências traumáticas na infância – como abuso, negligência ou bullying -, bem como perfecionismo, baixa autoestima e pressão social, são também fatores de risco (Phillips et al., 2006).
Do ponto de vista neurológico, níveis anormais de serotonina também foram associados à perturbação. É importante destacar que a DC é mais comum em pessoas que já sofrem de outras perturbações psicológicas, como depressão, ansiedade, perturbação obsessivo-compulsivo e distúrbios alimentares, o que pode agravar o quadro clínico e dificultar o tratamento, exigindo uma abordagem terapêutica integrada (Phillips et al., 2006).
Durante o verão, os sintomas podem intensificar-se devido à maior exposição corporal, ao uso de roupas curtas e ao aumento da presença nas redes sociais. A cultura do “corpo de verão”, alimentada por campanhas publicitárias e padrões estéticos irreais, potencia a comparação social, dietas extremas, exercício excessivo e a procura por intervenções estéticas (Laughter et al., 2023).
As redes sociais são hoje um dos principais catalisadores da DC. A sua evolução transformou a forma como nos comunicamos e como nos vemos. Se por um lado promoveu a conectividade global, por outro enraizou e promoveu estereótipos de beleza irrealistas (Monisha et al., 2024).
A imagem corporal é fortemente moldada por fatores socioculturais, com grande influência dos media. A prevalência de imagens editadas, com recurso a filtros ou outras aplicações, neste meio, contribui para a insatisfação com a aparência, alimentando progressivamente o sofrimento psicológico dos indivíduos e estabelecendo comportamentos desadaptativos (Kiarie & Gathuci, 2025).
Os jovens adultos, grupo particularmente vulnerável às comparações sociais e exposto constantemente às imagens “idealizadas”, exponenciam inconscientemente a autocrítica e reforçam os ideais de beleza inatingíveis, agravado pelo uso de redes sociais para lazer e construção da identidade (Kiarie & Gathuci, 2025).
As redes sociais estabeleceram, ao longo dos anos, comportamentos de procura por validação (através de likes e comentários). Este sistema reforçou negativamente a auto-perceção e sustentou a ansiedade relacionada à IC (Brun, 2024). Inclusive, alguns investigadores detetaram um padrão nas plataformas e seus efeitos: aplicações focadas em imagem (como o Instagram ou Snapchat) eram as que mais promoviam maior vigilância corporal e internalização de ideias de beleza, estimulando a modificação de imagens e encorajando, simultaneamente, procedimentos estéticos. As partilhas frequentes de fotografias geraram ciclos de feedback negativos e constante autoavaliação (Kiarie & Gathuci, 2025).
A DC, em comum com outras patologias, tem consequências na vida dos indivíduos. Estes tendem a focar-se seletivamente nas falhas de aparência, com pouca capacidade de ver o corpo de forma holística. Geralmente, têm as suas funções básicas alteradas, como perceção, memória e atenção enviesadas (Monisha et al., 2024).
Um grande impacto da perturbação engloba os comportamentos obsessivos, destacando a comparação corporal constante com outros, que reproduz sentimentos de inferioridade. Praticam, tendenciosamente, uma autoapresentação seletiva, levando a comparações sociais negativas (Monisha et al., 2024).
Estudos revelam que indivíduos com DC apresentam piores resultados nos campos de funcionamento e saúde mental, incluindo sofrimento psicológico, bem-estar emocional, trabalho, escola, atividade laboral, atividade de lazer e funcionamento familiar (Phillips et al., 2005). Apresentam barreiras significativas no seu funcionamento social (contacto e vivência com amigos, família e relacionamentos primários) que geram frustração com a vida e reduzem a satisfação geral (Phillips et al., 2005).
Concluímos, por isso, que a DC não se cinge ao fenómeno clínico, aborda conflitos sociais, culturais e digitais que moldam a perceção de si. Neste contexto, é fundamental questionar os ideais normativos de beleza, os mecanismos de validação social e as questões de desenvolvimento de identidade.
Assim, mais do que estratégias de correção individual, exige-se uma resposta coletiva, educativa e ética. É necessária uma educação holística e promoção do uso saudável dos conteúdos, favorecendo o pensamento crítico, a aceitação do corpo real e a construção de relações mais humanas e conscientes.
Referências Bibliográficas
Anson, M., Veale, D., & de Silva, P. (2012). Appearance comparison in individuals with body dysmorphic disorder and controls. Behaviour Research and Therapy, 50(12), 753–760. https://doi.org/10.1016/j.brat.2012.08.004
Brun, I. (2024). Like Mother, Like Daughter? Understanding Maternal Experiences of Intending to End the Intergenerational Transmission of Body Dissatisfaction to Daughters. Doctoral thesis, University of Calgary. Retrieved from https://prism.ucalgary.ca.
Cerea, S., Doron, G., Manoli, T., Patania, F., Bottesi, G., & Ghisi, M. (2022). Cognitive training via a mobile application to reduce some forms of body dissatisfaction in young females at high-risk for body image disorders: A randomized controlled trial. Body Image, 42, 297–306. https://doi.org/10.1016/j.bodyim.2022.07.010
Kiarie, G. W., & Gathuci, R. (2025). The influence of social media use on body dysmorphia among young adults in private universities in Nairobi, Kenya. Editon Consortium Journal of Psychology, Guidance and Counselling, 6(1), 1–18. https://doi.org/10.51317/ecjpgc.v6i1.575
Laughter, M. R., Anderson, J. B., Maymone, M. B. C., & Kroumpouzos, G. (2023). Psychology of Aesthetics: Beauty, Social Media, and Body Dysmorphic Disorder. Clinics in Dermatology. https://doi.org/10.1016/j.clindermatol.2023.03.002
Monisha, J., Niyathi, A. S., & Anthony, M. (2024). Relationship between social media and body dysmorphia: Meta-analysis [Manuscript submitted for publication]. Christ (Deemed to be University). https://doi.org/10.21203/rs.3.rs-5092386/v1
Mueller, V. M., Forrer, F., Meyer, A. H., & Munsch, S. (2024). Psychological correlates of body dissatisfaction in Swiss youth over a one-year study-period. Frontiers in Psychology, 14. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2023.1269364
Phillips, K. A., Menard, W., Fay, C., & Pagano, M. E. (2005). Psychosocial functioning and quality of life in body dysmorphic disorder. Comprehensive Psychiatry, 46(4), 254–260. https://doi.org/10.1016/j.comppsych.2004.10.004
Phillips, K. A., Didie, E. R., Menard, W., Pagano, M. E., Fay, C., & Weisberg, R. B. (2006). Clinical features of body dysmorphic disorder in adolescents and adults. Psychiatry Research, 141(3), 305–314. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2005.09.014
Rossell, S. (2022). Understanding and treating body dysmorphic disorder. Psychiatry Research, 319, 114980. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2022.114980
Rück, C., Mataix-Cols, D., Feusner, J. D., Shavitt, R. G., Veale, D., Krebs, G., & De La Cruz, L. F. (2024). Body dysmorphic disorder. Nature Reviews Disease Primers, 10(1). https://doi.org/10.1038/s41572-024-00577-z
Trichas, M., Janniger, C. K., & Schwartz, R. A. (2025). Body Dysmorphic Disorder: 21st century challenges. International Journal of Dermatology. https://doi.org/10.1111/ijd.17708