Donnarumma, Doué e Dembélé: a Trilogia da Sobrevivência | PSG 2-0 Bayern Munique

Donnarumma, Doué e Dembélé: a Trilogia da Sobrevivência | PSG 2-0 Bayern Munique

No coração vibrante de Atlanta, onde os relvados se estendem como palcos de lenda, viveu-se uma noite em que o futebol se despediu das amarras convencionais. Na terra dos touchdowns e dos anúncios milionários, o duelo entre Paris Saint-Germain e Bayern Munique não foi apenas um jogo: foi um testamento à resistência, à desordem, à beleza imprevisível do futebol. 

Venceu o PSG por 2-0, mas a crónica do encontro escreve-se em muito mais do que golos: houve lágrimas antes do apito inicial, sofrimento até ao limite humano, um guarda-redes em estado de graça, um menino francês a decidir e um francês renascido a fechar as contas quando tudo parecia perdido. No país do espetáculo, o caos teve sotaque parisiense.

Antes de o jogo começar, caiu o silêncio sobre o Mercedes-Benz Stadium. Em homenagem a Diogo Jota e André Silva, os irmãos tombados da bola, cumpriu-se um minuto em que até a cidade que nunca dorme estancou. Nuno Mendes não conteve as lágrimas. A dor transformou-se em faísca. 

O PSG entrou como quem não tem tempo para esperar: Doué ameaçou de fora da área, Barcola insinuava-se entre linhas e Kvaratskhelia agitava pela esquerda com o seu estilo desconcertante. Mas bastaram poucos minutos para que o Bayern, fiel ao seu ADN, impusesse ordem com a bola e sem ela. O bloco bávaro subiu, pressionou, condicionou a saída curta dos parisienses e obrigou Vitinha e João Neves a jogarem de costas para o jogo — um tormento para dois criadores habituados a pensar em liberdade.

O PSG insistia em construir a partir de trás com uma estrutura de 4+2, apostando na mobilidade dos seus médios e no apoio recuado de Doué. Mas o plano esbarrava num Bayern que parecia ter memorizado todos os atalhos do adversário. A construção dos franceses, tão fluida noutros palcos, tornava-se presa fácil. 

A bola queimava e, muitas vezes, acabava rifada. Foi nesse contexto que se tornou evidente a presença quase divina de Donnarumma. Aos 27 minutos negou um golo cantado a Michael Olise, com uma estirada felina. Logo depois, Neuer respondeu na mesma moeda, saindo da baliza como um felino para travar Kvaratskhelia. Era um duelo dentro do duelo. Um jogo de guarda-redes, de sobrevivência, de momentos.

O primeiro tempo foi-se desenrolando com o ritmo de um thriller. Nenhuma equipa dominava por completo, mas o Bayern parecia mais confortável no desconforto. Musiala e Kane combinavam em zonas interiores, Olise criava pânico pela direita, e Coman acelerava pela esquerda. Mas foi no último minuto dos descontos que a noite mudou de temperatura. 

Num lance aparentemente inofensivo, Jamal Musiala chocou com Donnarumma e caiu em agonia. O tornozelo esquerdo prendeu-se no relvado, a perna vergou e o prodígio alemão saiu de maca, com o rosto contorcido e as mãos no rosto. Um silêncio glacial atravessou o estádio. O futebol perdera ali uma das suas mais puras promessas, e o Bayern ficava órfão de criatividade.

Na segunda parte, o jogo libertou-se de todas as estruturas. Foi um vendaval. Bradley Barcola, isolado, testou Neuer com um remate; Olise respondeu com dois remates perigosos; Coman, já fatigado, teve o seu momento em sprint. O Bayern aumentava a pressão, mas o PSG mostrava dentes nos intervalos. Dembélé entrou e, num erro tremendo de Neuer, ficou com a baliza aberta. Falhou. A bola passou rente ao poste. A dúvida instalava-se: seria o PSG capaz de resistir tanto tempo, tão encostado?

Não foi preciso resistir para sempre. Aos 78 minutos, João Neves, com a inteligência de quem lê o jogo à frente do tempo, antecipou-se a Harry Kane, roubou-lhe a bola, acelerou pela direita, olhou e serviu Doué com um passe que parecia desenhado a régua. O francês recebeu à entrada da área, rematou com o pé esquerdo e bateu Neuer no primeiro poste. Um golo sem adornos, mas com toda a substância de um momento de génio. A celebração foi contida. A batalha ainda não tinha terminado.

Cinco minutos depois, Willian Pacho manchou a sua noite com uma entrada dura sobre Goretzka. Segundo amarelo, expulsão. O PSG recuava ainda mais. Luis Enrique recompunha a equipa com cinco atrás. O Bayern lançava a artilharia toda. Kane cabeceou para o fundo das redes aos 88 minutos, mas o lance foi novamente anulado por fora de jogo. O PSG sobrevivia em corda bamba, agarrado às mãos de Donnarumma e à coragem de todos os outros.

Mas o inferno ainda tinha mais brasas para atirar. Aos 92, Lucas Hernández, sob pressão de Raphaël Guerreiro, acertou-lhe com o cotovelo no rosto. Vermelho direto. Nove contra onze. Um cerco. Uma fortaleza sem soldados.

E no meio do cerco, o improvável. Numa saída rápida, Vitinha arrancou com a bola, rasgou metros e serviu Dembélé, que atirou à trave. A bola ressuscitou nos pés de Hakimi, que fintou três alemães num curto espaço e devolveu a Dembélé. O francês, desta vez, não perdoou. 2-0. Sentado no relvado, imitou um jogador de consola, carregando nos botões invisíveis. Era a sua homenagem a Diogo Jota, ele próprio uma lenda paralela nos ecrãs e nos relvados. Orgulhoso esteja ele no plano em que estiver.

Houve ainda um último sobressalto: Anthony Taylor apontou para a marca de penálti por alegada falta de Nuno Mendes sobre Kane, mas recuou na decisão após consulta ao VAR. O apito final soou entre suspiros e gritos. O PSG estava nas meias-finais. O Bayern, de novo, caía nos quartos. Thomas Müller despedia-se do clube onde cresceu e ganhou tudo, com uma última entrada que não mudaria o destino.

O PSG, com nove jogadores, não precisou de controlar a posse, nem de deslumbrar com circulação. Precisou de resiliência, talento e instinto. Viu-se forçado a abdicar da estética para sobreviver. E sobreviveu. Com Doué a marcar no único remate enquadrado, com João Neves a assinar uma assistência de antologia e com Donnarumma a erguer muralhas invisíveis entre os postes. 

A seguir, Nova Jérsia, para defrontar Real Madrid ou Borussia Dortmund. O objetivo? Juntar um título mundial ao cetro europeu. Porque este PSG não quer apenas jogar bonito. Quer ganhar. Mesmo quando tudo à sua volta parece ruir.

Neste duelo onde o caos foi norma e a lucidez uma raridade, o Paris Saint-Germain encontrou ordem no instinto. E na América, onde tudo se mede em espetáculo, os franceses provaram que o futebol ainda sabe ser teatro — mas também trincheira.

Homem do jogo: Gianluigi Donnarumma

Parece estranho ser o guarda-redes da equipa que vence o jogo considerado o melhor em campo, mas foi o guardião italiano quem segurou a equipa nos momentos de maior aperto. Depois de ter sido peça fundamental na conquista do Europeu de 2020 (realizado em 2021) e de ter repetido a preponderância na Liga dos Campeões deste ano, o guarda-redes aponta-se como um dos destaques do PSG neste Mundial de Clubes. Frente ao Bayern, colecionou cinco defesas de grande calibre, três delas dentro da área, e foi fundamental para segurar o nulo, antes de Doué faturaro 1-0. 

Texto: Raúl Saraiva

Imagens: @FCBayernBR & @PSGbrasil