As épocas festivas são normalmente momentos de celebração, repletos de encontros familiares, sociais e até religiosos, onde a comida ocupa um papel central. No entanto, com as lojas a transbordar de tentações e as mesas nos jantares recheadas de doces diferentes, este período pode facilmente transformar-se num grande desafio para quem sofre de distúrbios alimentares (Knopf, 2019). Numa época pós-festiva damos-te a conhecer o outro lado para quem sofre com a comida.
Além da comida, o período de festividades é muitas vezes carregado de outros fatores stressantes, como discussões familiares, questões financeiras e dilemas pessoais, que têm um grande peso sobre as pessoas (Dannibale, 2014). Para aqueles que enfrentam distúrbios com a alimentação – sendo a maioria do sexo feminino – esses desafios são intensificados, pois o constante destaque da comida e o aumento dos níveis de stress dificultam ainda mais o equilíbrio emocional.
Perturbações alimentares como a anorexia nervosa, a bulimia nervosa e a compulsão alimentar, embora diferentes, envolvem uma relação disfuncional com a comida. A anorexia caracteriza-se por uma restrição alimentar severa, associada a um medo intenso de ganhar peso; a bulimia envolve ciclos de ingestão excessiva de alimentos, seguidos de comportamentos compensatórios, como vómito induzido; e a compulsão alimentar manifesta-se em episódios de ingestão descontrolada, frequentemente acompanhados por sentimentos de culpa (Treasure et al., 2020). Estas condições têm consequências físicas e psicológicas graves, como desnutrição, problemas gastrointestinais e cardiovasculares, ansiedade, depressão e isolamento social, o que acaba por prejudicar os relacionamentos interpessoais (Dannibale, 2014).
Durante o Natal e o Fim de Ano, o ambiente festivo e a ênfase na comida intensificam os desafios para quem sofre de perturbações alimentares. As grandes refeições em grupo, os comentários (muitas vezes bem intencionados) sobre aparência ou hábitos alimentares, os doces e as bebidas alcoólicas podem desencadear um aumento da ansiedade e, subsequentemente, comportamentos desadaptativos (Haddock, 1998, as cited in Dannibale, 2014). Por exemplo, o aumento do consumo de alimentos pode desencadear episódios de compulsão alimentar ou reforçar a necessidade de controlo através da restrição alimentar ou do excesso de exercício físico (Dannibale, 2014). Para além disso, reuniões familiares, onde podem existir, por exemplo, comentários que demonstram alguma falta de compreensão e empatia por parte de familiares e amigos podem reavivar conflitos ou mágoas passadas e aumentar os níveis de ansiedade (Dannibale, 2014). Segundo Haddock (1998), a ligação entre emoções intensas e a ênfase na comida cria um ambiente propício para a exacerbação de perturbações alimentares (as cited in Dannibale, 2014).
Em resposta ao desconforto alimentar, estratégias de coping desadaptativas, como o uso de laxantes, vómito induzido ou restrição alimentar extrema, tendem a intensificar-se durante as épocas festivas, aumentando o risco de complicações de saúde e de recaídas em indivíduos em recuperação (Dannibale, 2014).
Atualmente, as redes sociais são outro fator de influência para as perturbações alimentares. Com 86% des jovens e adolescentes com perfis online (Moura, 2022, as cited in Oliveira, et al., 2023), as gerações atuais cresceram imersos num ambiente digital, onde a influência das redes sociais é inegável, especialmente no que se refere à disseminação de padrões de beleza inatingíveis, e muitos deles irreais. Esses padrões, que na maioria das vezes valorizam a magreza, alimentam uma procura constante pelo “corpo perfeito” por meio de dietas rigorosas e procedimentos estéticos. Tal pressão afeta negativamente a autoestima, leva à insatisfação corporal e gera outras consequências que colocam em risco a saúde física e mental, como a criação de hábitos alimentares desordenados, o avançar de refeições e a contagem obsessiva de calorias (Oliveira et al., 2023).
A influência dos mídia nas perturbações alimentares não pode ser ignorada, especialmente nas épocas festivas, durante as quais os conteúdos relacionados com beleza corporal e resoluções de Ano Novo, como “alcançar o corpo ideal para o verão” aumentam exponencialmente. É importante reconhecer que as perturbações alimentares são multifatoriais, envolvendo aspetos genéticos, psicológicos, sociais e ambientais. Contudo, a promoção do culto ao corpo perfeito e a disseminação de informações incorretas sobre emagrecimento rápido e a recuperação de distúrbios alimentares contribuem para comportamentos prejudiciais e promovem uma perceção pública errada sobre a gravidade dessas condições (Silva et al., 2024).
Devido aos sentimentos de culpa, ansiedade ou sobrecarga emocional que se associam muitas vezes às perturbações alimentares, e que em casos extremos podem levar até à ocorrência de atos purgatórios próprios de patologias severas (Rodgers et al., 2019), a necessidade de desenvolver estratégias para equilibrar o relacionamento com a comida durante eventos como as épocas festivas torna-se fundamental (Tylka & Kroon Van Diest, 2013). A auto-regulação emocional desempenha um papel central na promoção do bem-estar físico e mental (Tylka & Kroon Van Diest, 2013) e como consequência, contribui para a preservação do significado cultural e social das celebrações, enquanto facilita a desconstrução de ideias prejudiciais associadas à comida (Kabat-Zinn, 2003).
Evitar comentários sobre as escolhas alimentares, aparência ou peso é uma estratégia essencial para reduzir a pressão social em torno da comida (Rodgers et al., 2019). Comentários deste cariz podem reforçar normas sociais prejudiciais e aumentar o risco de insatisfação corporal e comportamentos alimentares desordenados, especialmente em indivíduos vulneráveis (Rodgers et al., 2019). Além disso, criar um ambiente livre de julgamentos permite que as interações sociais sejam mais inclusivas, promovendo uma experiência festiva centrada na celebração em vez de nas restrições alimentares (Burnette et al., 2020).
O foco no significado das celebrações também constitui uma boa prática, embora a comida tenha um papel importante nas festividades, é crucial reforçar o significado das celebrações que vai para além da alimentação (Kabat-Zinn, 2003). Práticas provenientes do mindfulness, como a atenção plena, ajudam a deslocar o foco do consumo compulsivo para a apreciação das interações sociais e das tradições culturais, com vista a promover um equilíbrio emocional durante as festas (Kabat-Zinn, 2003).
Adicionalmente, as interações intensas com familiares e amigos podem ser desafiadoras. Desde logo, devem ser estabelecidos limites claros, como interromper educadamente discussões sobre dietas ou recusar alimentos sem culpa, sendo uma abordagem eficaz para proteger a saúde mental dos indivíduos (Sperry & Thompson, 2021). A normalização de conversas sobre bem-estar emocional em vez de discussões alimentares contribui também para um ambiente mais acolhedor e equilibrado (Rodgers et al., 2019).
Em casos severos, quando os sujeitos demonstram um exacerbado desajustamento em relação ao contexto, reforça-se a procura de apoio e ajuda profissional de forma a dar resposta a este problema. Indivíduos que enfrentam dificuldades significativas com a comida ou com a imagem corporal, devem recorrer a ajuda profissional especializada na problemática.
A literatura aponta momentos de festividade como um potencial desafio significativo para indivíduos que enfrentam perturbações alimentares, exacerbando dificuldades emocionais e comportamentais (Knopf, 2019). Sendo um período marcado pela comida e por fatores stressantes, pode desencadear episódios de compulsão alimentar, restrição severa ou comportamentos compensatórios (Treasure et al., 2020). A influência das redes sociais, que promovem padrões de beleza irreais, agrava esta situação, contribuindo para a insatisfação corporal e a formação de hábitos alimentares desordenados (Silva et al., 2024). Ainda assim, estratégias como a prática de mindfulness, o foco no significado das celebrações e o estabelecimento de limites sociais revelam-se eficazes na mitigação destes desafios (Mason et al., 2016). O evitamento de comentários sobre peso ou escolhas alimentares contribui para a criação de um ambiente mais inclusivo e diminui a pressão social, permitindo interações mais significativas e menos centradas em padrões alimentares normativos (Rodgers et al., 2019). Em casos de maior gravidade, recorrer a apoio profissional é a decisão mais acertada a ser tomada (Fairburn et al., 2003).
Passadas as épocas festivas, a necessidade de reconhecer os desafios mantém-se, para que possamos compartilhar mais compreensão, empatia e um espaço seguro para todes, especialmente para aqueles que enfrentam batalhas que para muitos são invisíveis.
Referências Bibliográficas:
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Autor: NUPSI
Imagem: Érica Oliveira