Crise? Qual crise? Depois do 2023 traumático, do despedimento de Hansi Flick, das eliminações nas fases de grupos em 2018 e 2022, de não estar entre os oito melhores de uma fase final entre 2016, tudo mudou subitamente para a Alemanha.
O futebol europeu reúne-se no país, o sol brilha em Estugarda, a Alemanha diz adeus às dúvidas, abraça a confiança. Goleada à Escócia a abrir, vitória (2-0) contra a Hungria na segunda jornada.
É como se voltássemos a 2006. Também aí a Alemanha chegava num mau momento. Também aí havia dúvidas. Também aí os bons resultados iniciais ajudaram a reconciliar a mannschaft com o público.
Há 18 anos, os alemães chamaram sommermärchen àquelas semanas de junho e julho. “Conto de fadas de verão”. Havia futebol ofensivo, ambiente relaxado, alegria. A confiança numa Alemanha unificada, Lukas Podolski e Miroslav Klose como símbolos de um futuro entusiastamente multicultural.
Nem tudo é igual agora. O otimismo extra-futebol não é o mesmo, o entusiasmo multicultural não se assemelha. Mas, no relvado, pode-se estar a construir algo semelhante. Da descrença para a euforia. Faz sol em Estugarda, Kroos organiza, Gündoğan constrói, Musiala finta. O “conto de fadas de verão”, versão 2.0.
E, se a Escócia foi oposição suave na abertura do Euro 2024, a Hungria foi tudo o contrário. Manteve a imagem de equipa dura, competitiva. Logo nos primeiros instantes, quase marcaram, e foram sempre ameaçando Neuer. Mas faz sol em Estugarda e a vida corre bem aos alemães.
Assim, o primeiro bilhete para os oitavos de final do Europeu disputado na Alemanha vai para… a Alemanha. O conjunto germânico teve mais dificuldades do que na partida com a Escócia, mas venceu a Hungria por 2-0 para garantir os seis pontos e o consequente apuramento para a fase seguinte, os oitavos-de-final.
O conjunto alemão ainda não garantiu o primeiro lugar, pelo menos virtualmente, mas voltou a mostrar que é um forte candidato ao título, num jogo em que a Hungria, que ainda não somou qualquer ponto neste Europeu e tem o apuramento em risco, teve as suas oportunidades, mas esbarrou no muro Neuer.
Por outro lado, a equipa húngara entrou para o Euro-2024 como potencial surpresa, mas não mostrou contra a Suíça a qualidade que tinha apresentado recentemente nos jogos de qualificação e até na Liga das Nações, em que chegou a derrotar esta Alemanha. No entanto, esta tarde foi Neuer o grande responsável por manter os húngaros a zeros (já lá vamos).
Depois do choque inicial, com o remate de Sallai, a Alemanha estabilizou e, com Gündoğan a aparecer na grande área, acabou por conseguir criar perigo. Wirtz teve tarde menos inspirada, mas Musiala voltou a fazer a diferença.
O médio do Bayern acabou a época sem títulos, mas está a apostar forte no Europeu, não só ao apresentar uma candidatura surpreendente como melhor marcador da competição, mas especialmente pelas exibições que fazem do jogador bávaro um dos melhores do EURO 2024 até ao momento. No entanto, o mérito do golo inaugural germânico deve ser dividido entre Gündoğan, que insistiu e acabou por fazer a assistência, e pela defesa húngara, que, passivamente, facilitou em demasia e permitiu o golo de Musiala na passada, decorria o minuto 22.
A equipa de Marco Rossi não acusou assim tanto o golo. Continuou a sair da pressão com alguma qualidade, ligando jogo e criando perigo. Szoboszlai fez uso do seu muito potente remate, mas Neuer defendeu o livre com grande qualidade, assinalando, assim, o seu 17º encontro em Europeus. Igualou Gianluigi Buffon como guarda-redes com mais desafios na maior prova de seleções do vvelho continente.
Do outro lado, Musiala ia fazendo o jogo de Musiala. Recebia, rodava, fintava, fazia uso do seu corpo gelatinoso, de agilidade infinita. Com Wirtz, a outra jovem pérola, mais apagado, foi o craque do Bayern a maior ameaça criativa, ficando perto de bisar aos 37′, sendo que a Hungria ainda lhe viu um golo ser anulado por posição irregular.
Na segunda parte, os germânicos baixaram o ritmo, mas controlaram a partida durante grande a maioria do encontro. Gulácsi, que já tinha estado a bom nível na primeira parte, manteve vivas as esperanças húngaras. Esperanças essas que Barnabás Varga atirou por cima da trave.
Autor do único golo frente à Suíça, o extremo desperdiçou excelente oportunidade para o empate à hora de jogo ao cabecear por cima da baliza de Neuer um excelente cruzamento de Sallai, o melhor húngaro em todo o encontro.
Não marcou a Hungria, aproveitou a Alemanha. Poucos minutos depois do desperdício húngaro, a jogada construída entre Kroos e Musiala acabou por descair para o lado esquerdo, onde Mittelstädt apareceu para assistir Gündoğan, aos 67 minutos. Tal como no primeiro golo, o jogador do FC Barcelona, que antes do torneio vinha sendo contestado pelos adeptos alemães, apareceu no interior da área para fazer o 2-0 e sentenciar o apuramento alemão.
Com desvantagem no marcador e o apuramento em sério risco, o selecionador húngaro tentou mexer na equipa para procurar pelo menos um golo que pudesse ser importante nas contas finais na luta pelos melhores terceiros classificados, mas Kimmich, em cima da linha de golo, negou a melhor ocasião do encontro já nos descontos. Ou seja, no final de tudo, a gestão do tempo e da posse de bola imperou, com a Hungria sem conseguir desenvolver mais. Agora, resta a última jornada.
Para concluir, apenas dizer que dá gosto ver uma equipa como a Alemanha, com um ataque posicional elaborado, capacidade de atrair, constantes movimentos de apoio e rutura, dinâmica e combinações por dentro com qualidade individual à mistura, transição defensiva trabalhada e pressão organizada.
Não estamos em 2006, o mundo dá-nos razão para o pessimismo, não estamos na aurora de uma nova e confiante Alemanha. Mas faz sol em Estugarda e Kroos parecer querer escrever com os seus últimos passes um novo “conto de fadas de verão”.
Homem do Jogo – Jamal Musiala
Aos 21 anos junta velocidade, capacidade técnica em espaço curto excecional, inteligência, agilidade motora, finalização e uma eficiência brutal em tudo no seu jogo, executando com elegância. Jamal Musiala é um enormíssimo jogador!
Texto: Raúl Saraiva
Imagens: UEFA