Memórias falsas: Quando a nossa mente nos engana

Memórias falsas: Quando a nossa mente nos engana

Vamos fazer um pequeno jogo: pensa numa memória da tua infância, qualquer uma, e explora os seus acontecimentos. Será que aconteceu tal como te recordas? Terá realmente acontecido, imaginaste-a ou sonhaste que ocorreu?

Com certeza já terás feito estas questões a ti próprie, não é verdade? A memória é um fenómeno que pode enganador. A forma como armazenamos as nossas memórias e como as recuperamos, nem sempre corresponde à realidade do evento inicial, podendo até nem ter verdadeiramente ocorrido, mas continuarmos convictes de tal. Daí a importância de refletir e estudar sobre a memória, e mais precisamente acerca de memórias falsas e como é que estas ocorrem. Curiose? Então vamos lá!

Antes de falarmos sobre memórias falsas, é importante clarificar o conceito de memória e os tipos a esta referentes. Memória diz respeito ao processo de aquisição, retenção e recuperação de informação, e são vários os tipos de memória que trabalham na informação que recebemos, de forma a garantir que o processo de memorização ocorra de forma organizada (Centro de Reabilitação Profissional, 2024). O nosso processo de memorização começa pela aquisição de informação que é retida brevemente através dos nossos órgãos dos sentidos, denominada de memória sensorial (Centro de Reabilitação Profissional, 2024).

De seguida temos a memória a curto prazo que, tal como o nome indica, retém a informação durante um curto e limitado período de tempo, podendo a informação ser esquecida ou passar para a memória a longo prazo, que iremos abordar mais à frente (Portefólio de Psicologia, 2022). A memória a curto prazo pode ainda ser distinguida entre memória imediata, onde a informação fica retida apenas durante um período de tempo para depois ser esquecida; e a memória de trabalho, onde se mantém a informação enquanto esta é útil, ou seja, é a informação armazenada e utilizada que está ligada à realização de uma tarefa (Portefólio de Psicologia, 2022). A informação que tenha estado na memória a curto prazo e se perca, irá desaparecer para sempre e só se irá manter se passar para um outro tipo de memória: a memória a longo prazo (Portefólio de Psicologia, 2022).

A memória a longo prazo é responsável e capaz de manter a informação durante longos períodos de tempo, conseguindo armazenar a informação durante toda a vida (Portefólio de Psicologia, 2022). Distinguem-se dois tipos de memória a longo prazo: a memória declarativa (também denominada de memória explícita) e a memória não declarativa (ou memória implícita) (Portefólio de Psicologia, 2022). A memória declarativa refere-se à recordação consciente de acontecimentos passados, bem como a um conjunto de informações que engloba conceitos, pessoas, lugares e acontecimentos (Centro de Reabilitação Profissional, 2024). Já a memória não declarativa diz respeito ao uso de informação de forma inconsciente como, por exemplo, a capacidade de falar (Centro de Reabilitação Profissional, 2024). Também dentro destes tipos de memória existem subtipos (Centro de Reabilitação Profissional, 2024). No que diz respeito à memória declarativa, inserem-se: a memória semântica, que é o nosso conhecimento geral sobre o mundo, nomeadamente o significado de palavras, conceitos e o aspeto de objetos; e a memória episódica, referente aos episódios pessoais e eventos específicos que associamos a determinado tempo e lugar (Centro de Reabilitação Profissional, 2024). Por sua vez, na memória não declarativa, podem-se apontar três subtipos: a memória de procedimentos, que diz respeito à memória de capacidades não verbais e procedimentos motores, tal como andar de bicicleta; priming ou não associativa, já que é o tipo de memória de que não nos recordamos numa primeira vez, mas que conseguimos reconhecer numa próxima vez; e a memória associativa, onde associamos alguma coisa a outra sem termos consciência dessa associação (Centro de Reabilitação Profissional, 2024). Além destes tipos de memória acima descritos, que nos ajudam a recordar eventos do passado (retrospectivos), existe ainda a memória prospetiva, responsável por nos recordar daquilo que necessitamos fazer no futuro (Centro de Reabilitação Profissional, 2024).

Quem nunca pensou que se estava a recordar de algo de quando era mais jovem e depois apercebeu-se que, na realidade, isso nunca aconteceu? Pois é, grande parte de nós já experienciou isto, a que se chama memórias falsas. As memórias falsas, correspondem a recordações de acontecimentos que na verdade nunca foram experienciados pelo indivíduo (Huan et al., 2022). Além disto, a probabilidade destas se formarem aumenta com a presença de alguns fatores, sendo eles, por exemplo, o envelhecimento (Huan et al., 2022), o questionamento sugestivo e sugestionabilidade, a pressão de pares (Rassin, 2022) e, ainda, a confrontação com estímulos que estão em concordância com a base de conhecimento da pessoa (Maulina et al., 2021). Para além destes, verificou-se que o surgimento de memórias falsas poderá ser mais frequente devido à semelhança física entre informações novas e antigas, uma vez que pode ocorrer um aumento da sobreposição conceitual e/ou percetiva entre informações novas e antigas (Bowman et el., 2021).

De facto, desde há muito tempo que as memórias falsas e os mecanismos responsáveis pelas mesmas, provocam grande curiosidade nas pessoas, tanto no âmbito popular quanto científico (Oliveira & Albuquerque, 2015). Ao longo dos anos, diferentes estudos procuraram explicar o motivo pelo qual, numa dada situação e contexto, uma pessoa recorda um evento como se já o tivesse vivenciado ou, por exemplo, reconhece uma palavra como se já tivesse tido contacto com ela, quando, na verdade, a mesma nunca lhe foi apresentada (Oliveira & Albuquerque, 2015).

Existem diversas explicações que nos permitem compreender, um pouco melhor, como é que estas memórias são criadas (Ayache et al., 2022), nomeadamente a teoria Fuzzy-Trace (FTT), que defende a existência de traços de memória que podem coexistir na mesma: os essenciais e os literais (Ayache et al., 2022; Knott et al., 2022). Os primeiros, podem conduzir tanto a um reconhecimento correto como incorreto das coisas, visto que, têm por base informações gerais, sentimentos ou características vagas do evento (Ayache et al., 2022; Knott et al., 2022). Por sua vez, os traços literais, captam representações detalhadas e precisas acerca dos acontecimentos, fazendo com que, a recuperação destes, resulte na lembrança exata das coisas (Ayache et al., 2022; Knott et al., 2022). Em detrimento disto, as memórias falsas surgem como consequência da sobreposição entre estes dois traços (Ayache et al., 2022; Knott et al., 2022). De forma prática, durante a recuperação de uma memória, a informação obtida através dos traços essenciais pode preencher as lacunas da memória, com informações estereotipadas originando, desta forma, o conteúdo falso, característico das memórias falsas (Ayache et al., 2022; Knott et al., 2022).

A segunda teoria, a teoria do Monitoramento de Ativação (AMT), sugere que a ativação de informações semanticamente relacionadas pode levar à confusão sobre a fonte real da informação (Ayache et al., 2022). A partir daqui, as memórias falsas podem ser formadas devido à falta de monitoramento adequado da fonte de ativação dos conceitos (Ayache et al., 2022). De forma mais específica, quando existe uma exposição a uma determinada lista de palavras ou conceitos relacionados semanticamente, por exemplo “cama”, “sonho” e “descanso”, são ativados esquemas mentais, neste caso em concreto, relacionados com o tema do “sono” (Ayache et al., 2022). Isso significa que, por vezes, as pessoas não são capazes de distinguir entre a fonte real da ativação (por exemplo, a lista de palavras apresentadas) e, as outras fontes potenciais de ativação (como sugestões, contexto ou experiências passadas) (Ayache et al., 2022).

Desenvolvido por James Deese, em 1959, o Deese-Roediger-McDermott (DRM) é um dos protocolos experimentais clássicos de indução de memórias falsas (Oliveira & Albuquerque, 2015). Este, consiste numa manipulação experimental, onde es participantes analisam um conjunto de palavras relacionadas semanticamente, com o intuito de se compreender e demonstrar a formação deste tipo de memórias (Oliveira & Albuquerque, 2015). Ao longo deste processo, são apresentadas aes participantes, listas com diferentes palavras, por exemplo: “mesa”, “sentar”, “pernas”, “assento” e “macio” (Oliveira & Albuquerque, 2015). As palavras, encontram-se todas relacionadas com uma palavra que não é apresentada, por exemplo “cadeira”, que constitui o item crítico (Oliveira & Albuquerque, 2015). Por sua vez, o item, pode ser definido pelo seu simbolismo numa dada categoria, no caso, por exemplo, da palavra carro (item crítico) para a categoria de veículos ou, ainda, pode-se basear pela sua força associativa, ao nível semântico, com outros itens da lista, como “frio”, por exemplo para o inverno, o gelo e a neve outra referência (Oliveira & Albuquerque, 2015). Posteriormente à apresentação das diferentes palavras, são implementadas tarefas de recordação, bem como de reconhecimento (Oliveira & Albuquerque, 2015). Curiosamente, o item crítico, tende a ser reconhecido e recordado, tanto quanto os itens que de facto foram apresentados (Oliveira & Albuquerque, 2015). De forma mais prática, esta experiência origina um grande número de falsas recordações ou reconhecimentos do item crítico, isto é, gera uma memória falsa acerca do mesmo (Oliveira & Albuquerque, 2015).

Em suma, além de curioso, o fenómeno das memórias falsas, faz-nos perceber a fragilidade da memória humana! Estas memórias, além de terem o poder de moldar as nossas crenças, podem até mesmo influenciar as nossas decisões, muitas vezes, através de formas que nós nem nos apercebemos. Assim, da próxima vez que uma lembrança intrigante surgir, pergunta-te: será esta real ou apenas uma memória falsa? A resposta pode te surpreender!

Referências bibliográficas

Ayache, J., Abichou, K., La Corte, V., Piolino, P., & Sperduti, M. (2021). Mindfulness and false memories: State and dispositional mindfulness does not increase false memories for naturalistic scenes presented in a virtual environment. Psychological Research, 86(1), 571-584. https://doi.org/10.1007/s00426-021-01504-7

Bowman, C. R., Sanchez, M. A. A., Hou, W., Rubin, S., & Zeithamova, D. (2021). Generalization and false memory in an acquired equivalence paradigm: The influence of physical resemblance across related episodes. Frontiers in Psychology, 12(1), 1-19. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2021.669481

Centro de Reabilitação Profissional. (2024). Memória: O que é, que tipos existem e como compensar dificuldades? CRPG. https://crpg.pt/memoria-o-que-e-que-tipos-existem-e- como-compensar-dificuldades/

Huan, S. Y., Xu, H. Z., Wang, R., & Yu, J. (2022). The different roles of sleep on false memory formation between young and older adults. Psychological Research, 86(2),443-451. https://doi.org/10.1007/s00426-021-01516-3

Knott, L., Wilkinson, S., Helenthal, M., Xá, D., & Howe, M. L. (2022). Generative processing and emotional false memories: A generation “cost” for negative false memory formation but only after delay. Cognição e Emoção, 36(7), 1448-1457. https://doi.org/10.1080/02699931.2022.2128063

Maulina, D., Irwanda, D. Y., Sekarmewangi, T. H., Putri, K. M. H., & Otgaar, H. (2021). How accurate are memories of traffic accidents? Increased false memory levels among motorcyclists when confronted with accident-related word lists.  Transportation Research    Part    F:     Traffic    Psychology    and     Behaviour,    80(1), 275-294. https://doi.org/10.1016/j.trf.2021.04.015

Oliveira, H. M., & Albuquerque, P. B. (2015). Mecanismos explicativos das falsas memórias no Paradigma DRM. Psicologia Reflexão e Crítica, 28(3), 554-564. https://doi.org/10.1590/1678-7153.201528314

Portefólio de Psicologia. (2022, 8 de Abril). Tipos de Memória. Portefólio da Psicologia. https://joananunesportefoliodepsicologia.blogs.sapo.pt/tipos-de-memoria-10828

Rassin, E. (2022). Suggested false memories of a non-existent film: Forensically relevant individual differences in the crashing memories paradigm. Memory, 30(9), 1205-1211. https://doi.org/10.1080/09658211.2022.2085750

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Imagem: Inês Moura