A nespereira do meu avô

A nespereira do meu avô

Toda a minha família vive em Aveiro. Bem, nem toda, mas a parte principal dela. Ambos os meus avós vivem em Ílhavo (concelho de Aveiro), a dois quarteirões um do outro e sensivelmente a cinco minutos a pé, coincidência do destino, ou não. Como nasci em Aveiro, e os meus pais também, passamos grande parte das férias e fins de semana por lá. Eu cresci naquelas casas e se há algo que me marca é a grande nespereira que o meu avô paterno tem por cima da capoeira.

Desde pequena, ouço histórias sobre como o meu pai subia ao telhado da pequena capoeira, construída pelo meu avô, e passava tardes a comer nêsperas. Ele explicou-me como ia lá parar e que, na altura, o fruto ainda era ácido, por ser uma árvore nova. Contava-me como o pai dele se chateava por depois não ter fome ao jantar, ou por ter medo que caísse dali abaixo, mas ele não parou de o fazer. Pelo menos até encontrar outras coisas mais interessantes, como jogos de computador e namoradas, do que comer fruta ácida, diretamente da árvore, até ao sol se pôr.

Eu nunca fui tão atrevida. Mesmo sabendo os caminhos, truques e manhas para subir a capoeira e devorar as pequenas esferas amarelas, nunca o fiz. No entanto, desde que me lembro de ser gente, vejo a minha mãe a tirar a pele e os caroços das nêsperas, agora docinhas, para me dar pequenos pedaços. Lembro-me bem de olhar para a árvore no inverno, vazia, e desejar que chegue o verão para a ver pintada de amarelo torrado e poder ver o meu avô a subir ao escadote, enquanto grita para o fundo do quintal, onde estou a brincar com as flores, “Nika, vai buscar o balde e ajuda o avô!”. E eu ia, de balde na mão, com o Kant (o grande pastor alemão do meu avô) a correr atrás de mim, ajudar o meu avô a recolher a fruta que íamos comer ao jantar nos próximos meses.

Agora, a nespereira ainda lá está. Alta e, por esta altura, carregada de nêsperas. O meu avô já há alguns anos que não tem força nas pernas para subir ao velho escadote. Assim, a tarefa cabe, agora, aos meus pais, quando têm tempo vago. Já não há galinhas na pequena capoeira e o Kant há muitos anos que está enterrado no meio do quintal, onde costumava haver batatas. A árvore continua lá, com os frutos a aparecer, e nós ainda comemos nêsperas. Mas vai sempre haver a sombra de um menino no topo da capoeira e de uma neta feliz de balde na mão. Mesmo quando a nespereira já não estiver lá, vai sempre haver a lembrança da nespereira do meu avô.

Verónica Amado