Há uma questão fundamental a ter em conta quando se trata de um filme pelo Yorgos Lanthimos: existem regras a cumprir e elas serão prontamente descumpridas.
O grego mostra-se exímio na criação de universos subjacentes nos filmes que realiza, nos quais o não cumprimento das regras internas acarreta sérias consequências; pensem em The Lobster e The Killing Of A Sacred Deer. Curiosamente, Pobres Criaturas (Poor Things) subverte o próprio artista e apresenta-se como um incentivo à desconstrução de regras, normas, ideias e ideais socioculturais no qual quem sofre é quem se rege por elas.
Baseado no livro homónimo de Alaisdar Gray, o filme escrito por Tony McNamara mantém as intenções críticas do romance mas divaga e expande significativamente as inclinações feministas. Protagonizado por Emma Stone (Bella Baxter/Victoria Blessington), o filme apresenta-nos uma Londres Vitoriana a preto e branco e Bella uma criança no corpo de uma mulher – literalmente. A viver isolada da sociedade em casa do cientista Godwin Baxter (Willem Dafoe), o recrutamento do estudante de medicina Max McCandles (Ramy Youssef) como assistente de estudos leva a que Bella viaje pelo mundo com a companhia de Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo).
O que têm de perceber sobre este filme é que ele é, logo de início, exótico. Sob claras inspirações do clássico Frankenstein de Mary Shelley, Poor Things aperfeiçoa a arte do “ser e não ser”, demonstra os perigos de alguém se pensar deus e questiona a ética científica enquanto reforça a importância da liberdade individual da Mulher. Por entre cães-patos, galinhas-porcos e um Godwin frankensteinniano – tanto monstro como doutor –, esta película delicia-nos com diálogo inteligente, direto e mordaz, locais fabulosamente criados a roçar a arte de Hieronymus Bosch e do Expressionismo Alemão e uma potente crítica à sociedade: mais concretamente na sua relação com a Mulher – seja na etiqueta pública, na liberdade sexual ou na relação com o Homem.
Surpreendentemente sexual e explícito, Yorgos serve-se da nudez e do sexo para avançar a exploração do mundo e da sociedade com a perda da inocência por parte de Bella; tratando estes momentos com naturalidade e até pondo-os de parte na reta final do filme. A sociedade vitoriana, a experimentação animal e humana – em concreto as histórias de Godwin –, Duncan e Alfie (Christopher Abbott) lembram a hipocrisia subjacente às regras persistentes e alertam para a estratificação das classes e à necessidade de mudança, mesmo que ela não seja fácil e/ou possível no momento. Lisboa (Portugal) serve ainda como o primeiro grande aviso para as realidades não tão agradáveis do mundo, contrapondo-se à belíssima rendição da cidade.
Por entre bagaços numa tasca lisboeta após a aparição da Carminho à amizade com a socialista Toinette (Suzy Bemba), Bella descobre o mundo como ele é e rompe pelas imposições a duas medidas. Para tal, o realizador une-se ao cinematógrafo Robbie Ryan para proporcionar imagens surrealistas evocativas, largas e fluídas, com uma boa dose de zooms e fisheyes. A música ficou ao encargo do músico Jerskin Fendrix, servindo uma sonoridade impactante e relevante aos momentos do filme. Por sua vez, o excelente e tematicamente ressonante guarda-roupa deve-se a Holly Waddington.
Nomeado para 11 Óscares e já vencedor de uma miríade de prémios e honras, Pobres Criaturas merece um 5/5, 10/10. No entanto, aviso que não será definitivamente um filme para toda a gente – mas que toda a gente deveria ver. Para tal, encontra-se em exibição nos Cinemas NOS.
Texto: Joaquim Duarte
Imagem: Eduarda Paixão