Certamente já todos nós fomos a uma tasca comer. Uma daquelas tascas de aspeto geralmente banal, com uma ou outra mancha de humidade na parede e as mesas limpas mas não lavadas, em que a grande atração é o prato do dia: aquela pratada de cinco ou seis ingredientes que todos temos em casa, mas tão deliciosamente cozinhados pela tia do vizinho que mora na terceira casa a contar do buraco na estrada, que a apreciação do prato causa inveja às nossas avós.
Com a fome a dar horas, partimos ao ataque e descobrimos que… tem sal a mais. Mas o nosso parceiro diz que tem sal a menos; será? Olhamos em redor e toda a gente come sem reclamar; se calhar, tem a quantidade ideal de sal. As opiniões são polarizantes e os gostos são postos à prova, não fosse todo este parágrafo uma analogia à carreira do realizador do The Whale, Darren Aronofsky, e à receção deste mesmo filme. There will be spoilers.
Protagonizado por Brendan Fraser, The Whale apresenta-nos Charlie, um professor de Inglês solitário, com baixa autoestima, num estado depressivo e com um ligeiro problema de peso: 272kg! A faceta social de Charlie, audível mas não visível nas aulas online, dá-nos um homem sensível à honestidade das pessoas, que procura motivá-las a escrever o que lhes vai no coração e que irradia uma força intrínseca em confiar no melhor que as pessoas têm para dar ao mundo – mesmo quando o tratam mal. Estas interações acentuam-se com o decorrer do filme, reforçando o desespero de Liz (Hong Chau) em tratar de Charlie, a incredulidade de Mary (Samantha Morton) oito anos volvidos o divórcio e as circunstâncias dele, o engenho de Ellie (Sadie Sink) em se aproveitar do pai e a estabilidade de Thomas (Ty Simpkins) ao se encontrar perdido.
No entanto, por mais que Fraser sue e se esforce por caminhar em maquilhagem que pesava (até) 136kg, o enredo do filme baila com dois pés esquerdos. Os eventos e o diálogo transparecem uma ideia cíclica, refletida nas interações entre Charlie e Liz, nas pizzas diárias com o mesmo estafeta e não só, assim como a ideia de “o fim está próximo” – temas contantes nos filmes de Aronofsky –, mas o filme falha no (único) momento em que Fraser não integra o enredo, aliando-se um subenredo desinteressante e expositor no qual o realizador tenta empregar o seu gosto por suspense mas sem sucesso. Aliás, expositor é grande parte do diálogo, revelando-se básico, forçado e, por vezes, repetitivo; questiona-se a falta de simbologia visual pela qual o autor é reconhecido, não fosse o responsável por Requiem for a Dream, Black Swan e mother!. Dito isto, continua a haver algum simbolismo; por exemplo, a entrada em cena de Thomas é com um resgate físico do protagonista, oferecendo também um caminho para a salvação espiritual – mas revelando a hipocrisia da religião (organizada).
Não querendo correr o risco de soar demasiado reprovador, pois admito ter gostado do filme, é verdade que o esquema de cores, o ligeiro film grain, os ângulos de câmera, o sound design e o formato 4:3 funcionam muito bem. Em aspetos técnicos, o filme é um sucesso e garante que a localização única da ação – a casa dele – não fique aborrecida. O esquema de cores transpira-nos a tristeza subjacente à condição de Charlie e o film grain – ironicamente melhor notável à luz dos candeeiros – a decadência da sua vida. O sound design leva-nos à nostalgia que Charlie sente pela vida passada e as dificuldades da atual. E a câmera e o formato reforçam ideias contrastantes: embora seja uma massa enorme de ser vivo a roçar o nojento, Charlie é pequeno, quase que menos humano, quando comparado com as restantes personagens – evidenciado pelo espaço que ocupam e os ângulos de contacto visual presentes.
Aliás, a ideia de Charlie ser nojento é precisamente o que Aronofsky pretende desmistificar e, para isso, reforça-a à primeira vista do protagonista. Mesmo sendo um homem de enormes proporções, interiormente a dor é maior. Assolado pelo suicídio do parceiro, o qual tinha escolhido sobre a esposa e filha, Charlie sobrevive comendo desalmadamente durante anos e isolando-se, mantendo apenas contacto com a cunhada enfermeira Liz e com Dan, o estafeta das pizzas. A ex-esposa serve apenas para se manter informado de Ellie e pagar o suporte financeiro, alimenta um pássaro que o visita regularmente e equipara-se a Moby Dick, percebendo que é a dita baleia e que afetou negativamente o crescimento da filha. Talvez por este motivo, procura ser amigo com quem interage, mesmo que mantendo distância. Nas palavras de Aronofsky, “Charlie is very selfish, but he’s also full of love and is seeking forgiveness” e, tal como todos os seres humanos, comete erros e tem partes boas e partes más sobre si próprio.
Em jeito de conclusão, Fraser é soberbo e Chau é excelente, com uma presença estrondosa de Morton nos quinze minutos que tem; mas Sink e Simpkins, competentes, apresentam personagens fracas, com Sink em particular a fazer de “se te bate, é porque gosta de ti”. O final tem significado ambíguo mas diverge significativamente de estilo e sente-se out of place. O melodrama presente será capaz de cultivar o choro de alguém e a adiposidade de Charlie o nojo, mas, no geral, acaba por ser apenas um veículo de qualidade para a Brenaissance e um dos mais fracos filmes de Darren Aronofsky.
Joaquim Duarte
Imagem: Beatriz Machado