Mulheres no grande ecrã

Mulheres no grande ecrã

A maior parte das personagens femininas apresentadas na indústria audiovisual são escritas por homens a pensar nos homens. Não são criadas com o objetivo de parecerem reais, profundas ou tendo em mente o que as mulheres na audiência gostariam de ver ou acham que seria interessante.

Na maioria das vezes, o propósito da existência destas mulheres é ajudar as personagens masculinas nos seus arcos dramáticos. Ou são o par romântico do protagonista ou o motivo para este começar a sua jornada – a típica donzela em perigo. E quando são as protagonistas da história, têm personalidades e objetivos tão básicos que acabam por não ser tão interessantes. Por esta razão, grande parte destas personagens acabam por cair em categorias estereotipadas.

Primeira categoria: Se não é ‘sexy’, não tem valor. Por outras palavras, se não é desejável aos olhos do público masculino, não tem grande interesse. Um bom exemplo deste tipo de personagem é a Gracie Hart, interpretada pela Sanda Bullock no filme “Miss Simpatia”. Passo a explicar. No decorrer do filme, Gracie é gozada porque não é uma mulher feminina. Gosta de artes marciais, não cozinha, é desleixada com a sua aparência, não dá importância às roupas que usa, mas é muito esforçada no que toca ao seu trabalho. Por estas razões, os seus colegas fazem imensas piadas e questionam o facto de ela ser mulher ou não, por não corresponder aos estereótipos de feminilidade. Apesar disso, quando esta passa pelo grande makeover (que consistiu em maquiagem, vestido, salto alto e estilizar o cabelo) o mesmo colega que lhe disse que ela não era uma mulher, convidou-a para sair. Ela ganhou outro valor porque, de repente, começou a ser vista como bonita. (E vamos ser justos. É a f***ing Sandra Bolluck. A mulher é linda, independentemente do que lhe ponham na cara ou o que veste, let’s not fool ourselves)

Segunda categoria: O fenómeno da rapariga ‘cool’. Esta personagem é literalmente um homem no corpo de uma ‘hot girl’. Este termo foi popularizado quando a protagonista de “Gone Girl” a descreveu num monologo durante a reviravolta do filme. Ela explica que os homens adoram a ideia da ‘cool girl’ e que consideram esse termo como o Derradeiro Elogio. É muito semelhante à frase “tu não és como as outras raparigas”. A ‘cool girl’ é divertida e nunca se chateia. Ela gosta do mesmo que os rapazes gostam. Ela come pizza e hamburgers e continua com a sua silhueta sem esforço algum. Ela bebe cerveja barata e adora. Ela nunca cria drama ou fica demasiado emotiva, ‘she has it all’. É uma personagem irrealista apresentada como a rapariga ideal, que acaba por não ter uma personalidade, pois os seus gostos e objetivos nunca são desenvolvidos. Um dos melhores exemplos de uma “cool girl” é a personagem Mary do filme “There’s something about Mary”.

Terceira categoria: A rapariga híper feminina. Este tipo de personagem ainda se subdivide em duas categorias. A ‘mean girl’ – como a Regina George de “Mean Girls”, por exemplo – ou a mulher super híper mega emocional que não sabe lidar com os seus intensos sentimentos. De qualquer das maneiras, esta personagem é o oposto da ‘cool girl’. Ela é ‘over the top’. Ela preocupa-se demasiado com tudo. Ela grita e passa-se dos carretos. Ela arranja-se muito e é superficial. Ela odeia desporto e nunca sua. Ela parece uma boneca. Por vezes até é inteligente. Muito inteligente. Mas nem assim tem sonhos ou objetivos para o seu próprio futuro. O seu único propósito, a sua única vontade, é seduzir ou conquistar o rapaz. Ela é competitiva, sim, mas só com outras raparigas. Nunca com rapazes. Age por sentimentos e não por lógica. Ela nunca alcança o seu potencial, porque decide que a aparência e o que os outros pensam é mais importante. Um filme que conseguiu subverter este tipo de personagem foi, “Legally Blonde”, pois apesar da protagonista se preocupar imenso com a aparência e não parecer a pessoa mais inteligente do mundo, mostrou que com trabalho era capaz de realizar tudo o que quisesse, independentemente de como se apresentasse.

Quarta categoria: A ‘badass’ que nunca tem um arco dramático pessoal. Para ser sincera, estas sempre foram as personagens que mais admirava quando criança. Estas são as Trinitys (“Matrix”) deste mundo. Ela é uma lutadora, capaz de fazer qualquer coisa que um homem é capaz de fazer. Ela é implacável, forte, inteligente. Ela tem imenso potencial. Normalmente, quando aparece pela primeira vez, dá a entender que vai ser um elemento incrível de se acompanhar. E no fim, o seu arco dramático não é sobre ela, mas sim, sobre o protagonista. O seu verdadeiro propósito é ajudar os Neos a completar o seu destino e ser o seu interesse amoroso. Olhem só que novidade! Ela nunca é a protagonista da sua própria história.

Ainda sobre personagens femininas fisicamente fortes, parece que os escritores e realizadores se concentram tanto na força e capacidade física, que se esquecem de lhes dar características psicológicas que as tornem humanas, de modo a que a audiência se consiga rever nelas. As capacidades físicas não fazem uma boa personagem, mas sim o conjunto de experiências, conquistas, desilusões, quereres, emoções, gostos pessoais e lá está, capacidades. Quanto a este ponto, considero que isto é tão frequente em personagens femininas pelo facto de que normalmente só existe uma personagem destas num grupo de homens. Isto faz com que, com medo de lhes dar demasiadas vulnerabilidades, uma vez que parece que esta mulher tem que representar todas, se prefira não dar nenhuma, tornando-a irrealista e sem grande apelo. Masculinas ou femininas, personagens imperfeitas são sempre mais interessantes de se acompanhar do que personagens sem defeitos.

Um exemplo excelente de construção de personagens femininas fortes é o filme “Mad Max, Fury Road”. Neste filme, acompanhamos Furiosa, Max, e um conjunto de mulheres resilientes, prontas para lutar pela sua liberdade. E, apesar de todos estes personagens quererem algo semelhante, todos eles têm personalidades, modos de agir e passados próprios. Para além disso, como os protagonistas, Furiosa e Max, não formam um casal amoroso, as suas dinâmicas mostram uma relação de igual para igual. Eles, descordam, brigam, lutam entre si, mas quando é preciso, defendem-se um ou outro e quando vêm que um tem mais capacidades para fazer algo, põe de lado o ego e pedem ajuda. A Furiosa é uma das personagens femininas mais destímidas e fortes, tanto física, como psicologicamente, mas ela chora, magoa-se, fica com raiva, preocupa-se com os seus e procura a felicidade, à sua maneira. Ela é forte, mas parece real porque tem vulnerabilidades, assim como todos os seres humanos.

E isso sim, é lindo. Porque a verdade é que as raparigas também se querem sentir representadas no grande ecrã. Elas querem rever-se em heróis e não em donzelas indefesas. Mas como é que elas o conseguem fazer se não se escreverem heroínas como a Furiosa? Como é que é possível se todos os bons personagens forem homens?

Temos que começar a dar um passado interessante a estas personagens, coisa que muitas vezes não acontece, até porque, na maioria dos casos, nem direito a passado têm. Este problema começa com o processo criativo ao construir as personagens. Para mim, os escritores de “Alien” fizeram um trabalho exímio na construção dos protagonistas. Começaram por escrever as características psicológicas dos personagens sem lhes atribuírem nomes ou géneros. Apenas lhes deram um apelido para conseguirem referir-se a eles. Assim, mais tarde, quando decidiram que a personagem da Ripley era uma mulher, ela tinha vontades, objetivos, um passado e uma personalidade própria, tal como todos os que interagiam com ela.

Atenção, não vamos confundir construir personagens femininos interessantes com fazer remakes de filmes constituídos por elencos masculinos, trocar-lhes o género e chamar a isso representatividade – Ghostbusters (2016), cof cof. Isso é uma maneira barata usada pelas produtoras para que estas sintam que estão a mudar algo, estão a pensar de forma moderna (e uma maneira fácil de enraivecer os fans dos filmes originais, uma vez que não se respeita a memória da obra antecessora).

Peço apenas para que filmes com boas personagens sejam a norma e não a exceção, independentemente se são personagens femininas, masculinas, cães ou gatos. Peço isto para que não nos sintamos estanhos ao ver muitas heroínas no mesmo frame como acontece em “Vingadores, End Game”, mas para que isso pareça normal, assim como é normal aparecerem só heróis. Peço por mais personagens como a Mulan, como a Beatrix Kidd, de “Kill Bill” ou Clarice Starling, de “Silence of the Lamps”. Peço por mais personagens como Miranda Priestly, de “The Devil Wears Prada”, Katherine Johnson, ou qualquer personagem do filme “Hidden Figure”.

Heroínas ou vilãs, só peço mais personagens complexas, porque todas as meninas merecem crescer a saber que também elas podem ser o que quiserem.

Inês Chantre