Gritofuturista

Caros leitores, permitam-me, num parágrafo – para que no final desta crónica não me despeçam –, dizer que é uma honra ser colunista deste jornal onde só trabalha gente gira e séria. A única coisa que ainda estou para compreender é o porquê de me escolherem para ser colaborador de um jornal universitário, visto que só bebo finos em copo de vidro e já não me lembro de beijar setenta e duas bocas numa noite. Não obstante, agrada-me o facto de escrever para leitores sóbrios e para estudantes. Revelei também muito cedo, isto na adolescência enquanto redigia um belo texto para geometria e bebia bagaço velho por um funil, uma aptidão inusual para escrever coisas interessantes em que apenas uma ou duas pessoas tinham curiosidade de ler. Acredito que agora terei mais sucesso, uma vez que para além dos meus pais arranjei muito forçadamente uma namorada. Digo forçadamente porque isto de dormir sozinho no inverno e não ter ninguém para me dizer que sou lindo tem muito que se lhe diga. Peço também que não esperem das minhas crónicas sensatez, prudência e muito menos opiniões relevantes. O meu acordo tácito para com os leitores é fornecer agradáveis convulsões físicas através de palavras. Posto isto, vamos ao que interessa que ainda tenho de descansar os cotovelos.

A Porto Editora omitiu (em tracejado) do manual de Português do 12.º ano três versos da “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, por esta possuir um teor sexual e escandaloso, numa “linguagem explícita”. Na versão dos docentes o poema prevalece na íntegra. Como se os docentes percebessem mais de sexo do que os próprios alunos.

De acordo com a Porto Editora há uma preocupação didático-pedagógica. Então não. Atenção, estamos a falar de miúdos com uma média de idade de 18 anos, possuidores de uma conta de Instagram e Facebook, em que o divertimento deles se baseia em enviar divertidos nudes uns para os outros. Coitado de mim se no meu tempo quisesse enviar metade do meu abdómen. Tinha que tirar foto e mandar revelar. Nem quero imaginar no tempo dos meus pais em que se namorava à janela. Mostrar o tarolo do terceiro andar parece-me bastante inusitado e anticivilizacional.

Acreditando, então, que exista uma preocupação didático-pedagógica, e sabendo que este poema não é um bom exemplo de pedagogia, porque é que não escolheram outro poema? Ou outro heterónimo? Escolhiam o Alberto Caeiro que é mais bucólico e adora flores a florir.

O primeiro verso omitido é: ” Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas”. Como se algum um jovem de dezoito anos soubesse o que são “pândegos”. E se o problema reside na palavra “putas”, acho isso uma afronta para todos aqueles que estudam para entrar em engenharia ou medicina ou outro tipo de área que faz o mundo avançar – ao contrário de mim que quero ganhar muito dinheiro, sentadinho a escarnecer – e que apenas conseguem ter o conhecimento de “putas” através do ato romântico da leitura de um poema de Álvaro de Campos, ou conhecimento de incesto através da prosa de Eça de Queiroz, ou o conhecimento de um erudito chavascal através de Bocage.

Os versos seguintes omitidos são: “E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! – / Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada”. Não percebo tanto escândalo. É uma segunda-feira no Vaticano. Ou um relato em direto de uma pós-missa. Embora o Carlos Cruz me venha sempre à cabeça, injustamente.

O que me aflige nisto tudo é a moda de fazer considerações morais a respeito da arte. Chegar ao cúmulo de dizer que Fernando Pessoa é um badalhoco sabendo muito bem que quem escreveu os versos foi Álvaro de Campos, é como dizer que o Hemingway é um nojento porque escreveu a Bíblia.

Obviamente, a leitura que estes neo-puritanos fazem da arte é extramente errónea. Há um excesso de literalidade que me repugna. É evidente que ao lermos Os Maias não vamos logo começar uma forte copulação com a nossa própria irmã; nem ao lermos o “Crime e Castigo” nos dá uma vontade exacerbada de matar uma velhinha a machado; nem ao lermos a Madame Bovary, de Flaubert, vamos começar a ser adúlteros e a javardar porcamente; muito menos vamos, ao lermos o Trópico de Câncer, de Henry Miller, começar a ter atitudes obscenas. Eu gosto muito de Marquês de Sade e não é por isso que gosto de levar com um arame farpado na boca quando a minha namorada está a beijar-me o pescoço.

A literalidade estúpida e o puritanismo estão na moda. Mas é uma moda tão parva como as calças à boca de sino.
Herman José