“Não existem fórmulas nem regras para o amor”, mas na presença de Autismo, como são as relações sexuais e afetivas influenciadas?
A Perturbação do Espetro do Autismo (PEA) é uma perturbação crónica do neurodesenvolvimento, caracterizada por défices na comunicação e interação social, e por padrões de interesses restritos e comportamentos repetitivos, que influenciam significativamente a vida afetiva-sexual dessas pessoas (Ottoni & Maia, 2019). Sabendo que estas dificuldades podem variar significativamente de pessoa para pessoa, é claro que esses indivíduos enfrentam desafios únicos ao tentar construir e manter relações íntimas saudáveis (Pessoa & Mendonça, 2022). Apesar da sexualidade de pessoas com PEA ser frequentemente negligenciada, não podemos ignorar o facto de que esses indivíduos também têm o direito à educação sexual adequada, e consequente autonomia e bem-estar (Ottoni & Maia, 2019). Alguma vez te tinhas questionado sobre a influência desta perturbação na vida sexual? Se não, nós explicamos …
De acordo com o Dicionário Etimológico (2013), o amor é definido como “o ato de cuidar, gostar, sentir afeição, desejo ou preocupação por algo ou alguém”. No entanto, as formas de expressar o amor variam de acordo com as normas culturais de cada sociedade e época (Pessoa e Mendonça, 2022). Isso levanta questões importantes sobre como as pessoas com autismo lidam com esta construção social do amor, uma vez que a interpretação de tais normas pode ser um grande desafio para elas (Pessoa e Mendonça, 2022). Do ponto de vista físico, um indivíduo com Perturbação do Espetro do Autismo funciona e tem um desenvolvimento como uma pessoa neurotípica, contudo, ao olharmos para um contexto mais social, não é incomum verificarem-se grandes dificuldades na construção e conservação de relacionamentos afetivo-sexuais (Costa, 2020, as cited in Pessoa & Mendonça, 2022).
Se fizermos uma breve análise na expressão – que provavelmente todos já ouvimos ou dissemos – “não existem fórmulas nem regras para o amor”, e tendo ainda em consideração a sua conotação genérica, no caso de indivíduos com PEA esta compreensão torna-se ainda mais complicada uma vez que, devido ao conjunto de especificidades, o seu comportamento numa relação nem sempre é o socialmente esperado (Pessoa & Mendonça, 2022). Além disso, questões sensoriais afetam frequentemente esses indivíduos, o que pode dificultar que as suas relações perdurem no tempo. Pessoas com PEA podem ter baixa tolerância a toques, beijos ou gestos de afeto, e muitas vezes preferem estar sós, e podem também ter dificuldade em interpretar expressões faciais e emoções dos outros, o que também dificultar a comunicação e o entendimento mútuo (Soza, 2019 as cited in Pessoa & Mendonça, 2022).
As interações sexuais e afetivas são fenómenos complexos, influenciados por uma série de fatores biopsicossociais (Silvia & Santos, 2023). Diversas dificuldades podem surgir ao longo dessas interações, interferindo no bem-estar e qualidade da relação entre ês parceires e a satisfação individual (Silvia & Santos, 2023).
As dificuldades sensoriais afetam a maior parte das pessoas com autismo e são um dos maiores obstáculos face ao estabelecimento de relações de afeto ou até mesmo à simples interação com ês outres (Almeida, 2022). Os seus sentidos podem ser excessivamente sensíveis (hipersensíveis) ou pouco ou nada sensíveis (hipossensíveis). Em certos casos, uma pessoa com PEA, pode até parecer que não processa informações sensoriais de qualquer um dos cinco sentidos – um exemplo disso é que em algumas situações podem processar as palavras como sendo apenas um “ruído”. No que toca à sexualidade, estes problemas têm impacto sobretudo na intimidade com ê parceire, havendo a necessidade de uma maior comunicação, compreensão (por exemplo, numa situação de stress, uma pessoa com PEA pode facilmente sentir uma sobrecarga sensorial e ê parceire deve ser capaz de lhe dar o seu espaço e tempo de “pausa”), paciência e do desenvolvimento de estratégias que permitam a acomodação das necessidades de ambes (Almeida, 2022). Neste sentido, é fundamental que as pessoas com PEA procurem, em qualquer fase da vida, apoio especializado para treinar habilidades sociais, pois, tal pode ajudar a facilitar a criação e manutenção de vínculos afetivos (Morandini et al., 2021).
A nível emocional, as dificuldades que aportam toda a dinâmica do problema são as constantes alterações no temperamento, visto que, indivíduos com PEA são mais suscetíveis a desenvolver perturbações de humor (Silvia & Santos, 2023). Tudo isto potencia a ausência de regulação emocional e não só a incapacidade de sustentar interações sexuais e afetivas, como também, a construção de intimidade e confiança (Silva e Almeida 2020). Por este motivo, pessoas com PEA, apresentam comportamentos de evitação ou retraimento com ê sue parceire (Silvia & Santos, 2023). Este isolamento é muitas vezes marcado pela falta de comunicação entre as pessoas da relação (Azevedo e Costa 2022). Tudo isto culmina na incapacidade de expressar de forma clara os desejos, as necessidades e as expectativas, e, por sua vez, resulta em estados de desentendimento, desconfiança e insatisfação sexual (Azevedo e Costa 2022).
No contexto da educação sexual, também as dificuldades são notórias. Além de lidarem com a imprevisibilidade na forma como amam e se relacionam, as pessoas com PEA são muitas vezes alvos de atitudes que infantilizam as suas relações e em que o foco passa apenas pelas suas limitações e dependências (Ottoni & Maia, 2019). Nas aulas, debates ou palestras, como podes já ter reparado, as relações de afeto e a sexualidade de pessoas com PEA são frequentemente esquecidas. No entanto, abordar também esta parte que se mostra tão desafiante na vida quotidiana das pessoas com PEA, seria fundamental na desconstrução dos mitos, crenças e preconceitos sobre as interações afetivas e sexuais que sabemos que existem na nossa sociedade (Ottoni & Maia, 2019).
A educação sexual é, assim, essencial para pessoas com PEA, dada a dificuldade em comunicar-se de forma eficaz e reconhecer sinais emocionais (Silvia & Santos, 2023), podendo ter um papel ativo na catequização sobre limites pessoais e sociais que promoveriam interações mais seguras e saudáveis (Silvia & Santos, 2023). Acrescenta-se que a educação sexual poderia auxiliar as questões que abordam o consentimento com vista a reduzir o risco de abusos, uma vez que podem ser um grupo de indivíduos mais vulnerável devido à dificuldade em reconhecer comportamentos impróprios (Azevedo e Costa 2022).
Na fase da adolescência, a educação sexual pode ajudar a lidar com as mudanças corporais da puberdade, reduzindo o desconforto e a ansiedade que essas transformações podem causar (Silvia & Santos, 2021). Ao proporcionar conhecimento sobre o próprio corpo, adolescentes com PEA poderiam ser capazes de tomar decisões mais informadas sobre as suas relações afetivo-sexuais (Silvia & Santos, 2021).
O conhecimento limitado sobre o corpo, a sexualidade e os aspetos emocionais envolvidos nas interações íntimas podem levar a mitos, desinformações e comportamentos prejudiciais (Azevedo e Costa 2022). A ausência de uma educação sexual integral pode dificultar a compreensão das próprias necessidades sexuais e das necessidades dê parceire, promovendo expectativas irreais e inseguranças (Silvia & Santos, 2021). A desinformação pode ainda perpetuar estigmas e tabus que inibem a expressão da sexualidade de maneira saudável e prazerosa (Azevedo e Costa 2022). A psicoeducação surge como uma ferramenta essencial no desenvolvimento de conhecimento sobre as próprias emoções e sensações, e na preparação para lidar com as demandas físicas, emocionais e cognitivas de relacionamentos íntimos (Pessoa e Mendonça, 2022).
Em suma, a Perturbação do Espetro do Autismo é caracterizada por desafios substanciais para as interações afetivas e sexuais, influenciadas por défices na comunicação, sensibilidades sensoriais e padrões comportamentais restritos (Ottoni & Maia, 2019). Estas características variadas entre indivíduos destacam a necessidade de abordagens personalizadas na educação sexual, que reconheçam as especificidades de cada pessoa com PEA, ofereçam o suporte na construção de vínculos afetivos mais satisfatórios e promovam a autonomia e o bem-estar emocional (Silvia & Santos, 2023). Falar sobre e conhecer estas particularidades é o primeiro passo para promover um ambiente onde todes possam desenvolver relacionamentos afetivos e sexuais de maneira saudável e plena, para que não existam “fórmulas nem regras para o amor”.
Referências Bibliográficas:
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Morandini, J. S., Blaszczynski, A., Costa, D. S. J., Dar-Nimrod, I., & Kashima, Y. (2021). Birth order, sibling sex ratio, and systemizing in men and women. Frontiers in Psychiatry, 12, 685256. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2021.685256
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Pessoa, S. C., & Mendonça, S. S. (2022). Transtorno do espectro autista e acessibilidade amorosa. In Soares, A., Capovilla, F., Simão, J., & Neves, L. , Caminhos da aprendizagem e inclusão: Entretecendo múltiplos saberes (293-307). Artesã. https://www.researchgate.net/publication/357992127_Transtorno_do_Espectro_Autista_e_Acessibilidade_Amorosa
Silva, J. A., & Santos, M. B. (2023). Educação sexual em populações com autismo: Uma análise dos desafios e estratégias. Revista de Psicologia e Saúde, 12(2), 45-59. https://doi.org/10.38087/2595.8801.375
Silva, M. R. da, & Santos, F. J. dos. (2021). A influência da educação emocional na aprendizagem de alunos com necessidades especiais. Research, Society and Development, 10(6), e15558. https://doi.org/10.33448/rsd-v10i6.15558
Silva, P. R., & Almeida, M. F. (2020). Desafios da inclusão escolar: Reflexões sobre a prática pedagógica em contextos inclusivos. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, 14(Esp. 2), 1384-1401. https://doi.org/10.21723/riaee.v14iesp.2.12575