Fruta do mesmo pomar

Sempre fui amante de velharias: discos de vinil, posters de filmes dos anos 70, livros de poesia e de uma utopia de amor capaz de resistir ao seu maior teste: o tempo.
Sempre romantizei muito a vida e nunca soube bem ao certo o porquê, até descobrir que este defeito (ou feitio) meu me é inato, que partilhou útero comigo e nasceu de mãos dadas com o meu corpo, sangue e mente.
Pelos vistos é assim que gente como a minha gente sente.
Descobri esta carta há pouco menos de três meses. Quis tê-la só para mim, guardá-la como segredo e leva-la comigo para a cova quando a minha hora chegasse. Mas aí lembrei-me de que um amor como este merece poesia em tons de sépia e cafuné pela manhã.
A Ana e o José conheceram-se há pouco mais de 40 anos numa festa popular. E o disco até virou, mais do que uma vez, mas tocou sempre o mesmo. Viveram um amor corrido, deslocado, mas acima de tudo viveram um amor que foi sempre isso mesmo: amor. E isso bastou.
Eu sou fruto do fruto desse amor, sou filha do mesmo pomar e fruta da mesma estação.
E esta é a minha herança. Esta é uma carta da minha avó para o meu avô.

– Não serei breve. Não o sei ser nestes casos, não o sei ser quando se trata de ti. 
Poderia fingir inocência, escrever uma carta ou poema cheios de verbos vazios e gerais, conjugados no futuro, como se não soubesse a quem me dirijo, como se não fosse inevitável, e diria quase que inata, esta sensação de te imaginar a cada palavra que escrevo, de sentir, a cada letra, vírgula e ponto final, a intensidade do teu toque, sem que os pedaços do meu corpo, que já te sabem de cor, falem por mim e me sussurem ao coração as palavras que as mãos ainda não conheciam para te descrever. é inevitável o arrepio que se faz sentir, de todas as células e pedaços de pele, ao ouvir de perto a melodia da tua respiração, ao sentir-te perto, é inevitável o acalmar do coração, da mente e de toda a confusão que sou, quando sinto o teu abraço encaixar perfeitamente no meu. és inevitável na minha poesia e todos os versos rimam com a maior facilidade do mundo. só porque são sobre ti. 
O mundo faz-se rima só para ti. 
E eu escrevo só para ti. 
O mundo pariu-me sonhadora. 
O tempo prendeu-me ao chão, com raízes colossais. 
A vida fez do futuro quebra-cabeça sobre o qual nunca me aventurei pensar. E se antes não pensava sobre o futuro, hoje não posso deixar de sonhar com ele.
Devo isso à menina que deixou de sonhar porque o mundo acabou o conto de fadas dela muito cedo. Talvez por isso nunca tenha sido muito fã de histórias da carochinha antes de dormir. 

E sonho, sonho muito. E quero, quero muito. muita coisa. Tudo contigo.
Quero velhinha ser e nada mais conseguir ver a não ser os cabelos esbranquiçados pelo passar do tempo e o avançar da idade. Quero acordar mal-disposta e reclamar de mais uma dor no tornozelo esquerdo e, assim, ter a certeza que no dia a seguir vai estar frio.
Quero acordar contigo. 
Quero acordar com os pés frios, só para, passados tantos anos, continuar a ter uma desculpa para me poder aproximar ainda mais de ti, como se fosse humanamente possível. Quero acordar-te com beijos à esquimó, só porque sei que não gostas que te mexa no nariz, sempre foste de sangue fácil. 
Quero continuar a ser a primeira a acordar para te poder arreliar com as mãos frias por dentro da camisola de pijama só para te ouvir dizer “oh amor, logo de manhã?”. Quero continuar a rir-me como a menina mulher que escreve hoje, sem medo do amanhã, porque sei que te vais rir logo a seguir. 
Quero levantar-me e partilhar o lavatório contigo enquanto escovamos os dentes e fazemos caretas ao espelho. Quero fazer-te o pequeno-almoço e ouvir-te reclamar do cheiro a queimado porque me esqueci das torradas enquanto via o programa da manhã da rtp. Quero sentar-me e queixar-me das costas por causa do peso dos álbuns de fotografias que estarão sempre no móvel da cozinha para que os nossos netos os possam ver sempre que forem lá almoçar a casa. Quero reclamar contigo porque te esqueceste de acender o fogão e a cozinha está fria. Quero ler o jornal contigo enquanto dizemos frases próprias da idade, enquanto fazemos comparações de tempos e gerações porque me parece a mim, que “no nosso tempo isto não era nada assim”.

Só não quero continuar a amar-te como te amo agora. Não faria sentido absolutamente nenhum. Quero amar-te mais. Quero acordar todos os dias com a sensação de que ontem te amei menos do que te amo hoje, mas que, mesmo assim, hoje ainda te amo menos do que te irei amar amanhã. Quero que acordes sempre com amor. Quero que te deites sempre com ele. 

Quero deitar-me contigo. Pijama quentinho e lençol de flanela, creme de noite e pantufas quentes para estes meus pés sempre frios, rádio aceso, enquanto te ouço cair no sono. Beijo-te os lábios, as bochechas e a testa e deixo-me cair no teu peito para que possa, também, eu adormecer, ao som da melhor banda sonora do mundo: a tua respiração, uma canção qualquer dos ABBA e o bater do teu coração que bate no mesmo compasso que o meu. Quero que continues a querer-me mesmo com rugas e marcas do tempo. 

Quero envelhecer e ser velha contigo. Quero teimosia, discussão, caos, razão, calma, paz, amor, desejo, paixão, risos e amuos, logo que seja contigo, porque se for com outro alguém não quero deixar queimar as torradas, nem ouvir o noticiário da noite, não quero álbuns no móvel da cozinha, nem netos que nos perguntem sobre o amor. 
Quero-te e contigo quero tudo. 
Basta?”

autoria: Maria Correia