Regressar a casa tem sempre algo de ritual. No caso do Sporting, a primeira noite no renovado Estádio José Alvalade não foi apenas um regresso: foi uma afirmação, um hino de golos que afogou o Arouca num mar verde e branco. O marcador registou um 6-0 sem contestação, mas o jogo foi muito mais do que uma sucessão de números. Foi narrativa, foi espetáculo, foi técnica e tática, tudo amalgamado numa exibição que ficará como marco do “Alvalade 2.0”.
Desde cedo se percebeu que Rui Borges montara um plano pensado ao detalhe: pressão alta, homem a homem, campo inteiro. O Arouca, fiel à filosofia de Vasco Seabra, procurava sair curto, apoiado, com Fukui, Pedro Santos e Lee Hyun-ju a girarem o centro do jogo. Mas o Sporting respondeu com intensidade física e disciplina tática, impedindo que os criativos adversários se enquadrassem de frente para a linha defensiva.
Ao recuperar em zonas altas, os leões transformavam essas bolas roubadas em transições imediatas, ainda que nem sempre a definição fosse a melhor. O perfume do último passe ainda não saía com toda a nitidez, mas a ideia estava lá — e bastaria um lampejo para tudo se desbloquear.
Foi então que Zeno Debast começou a dar aulas no novo relvado híbrido de Alvalade. Se já era conhecido pela segurança defensiva, a qualidade de passe do belga hoje ultrapassou qualquer expectativa. Não há em Portugal central com tamanha precisão técnica. Curto, longo, rasteiro, de trivela — todos os passes saíam açucarados, sempre com intenção. Em apenas vinte minutos já tinha encontrado Trincão entre linhas, já tinha servido Genycom variações de flanco, já tinha desmontado o bloco compacto do Arouca.
Foi a partir dele que nasceu o tento inaugural: um passe vertical, Trincão em apoio, Suárez a lutar até cair na área, e a bola a sobrar para Ricardo Mangas, que não desperdiçou. O lateral, que muitos antecipavam como mero elemento de rotação, revelou-se um avançado disfarçado, um jogador que aparece livre em zonas de finalização. Lateral para fazer golos, mais do que assistências.
O primeiro golo trouxe festa às bancadas renovadas, mas a sentença viria pouco depois. Dylan Nandín derrubou Gonçalo Inácio na área. O árbitro, Hélder Malheiro, após consulta ao VAR, apontou para a marca dos onze metros e exibiu o vermelho direto. Suárez, frio, converteu sem falhas. O colombiano tem uma qualidade rara: a perceção de espaço. Sabe sempre onde está, quantos adversários o rodeiam e por onde pode escapar. Foi também essa inteligência que lhe permitiu executar o penálti com a calma de um veterano.
Com 2-0 e mais um homem, o Sporting passou a explorar com maior frequência a largura. O Arouca, preocupado em fechar o espaço interior, encolhia-se no centro, mas deixava abertas as alas. Geny Catamo assumia sucessivos duelos de um-para-um, explorando a faixa direita com ousadia.
Já do outro lado, faltava um desequilibrador puro, alguém capaz de oferecer soluções de drible e imprevisibilidade. Era evidente que, para evitar que toda a responsabilidade caísse em Catamo ou no jovem Geovany Quenda, os leões beneficiariam da chegada de um extremo canhoto capaz de criar no corredor oposto.
Ainda antes do intervalo, Trincão fez jus ao talento que lhe é reconhecido. Numa jogada de detalhe tático, Inácio simulou o cruzamento, obrigando a defesa a baixar, e depois serviu rasteiro o colega que surgia frontal à baliza. O extremo português rematou colocado, sem pedir licença, assinando um golaço que fechou a primeira parte em 3-0.
O intervalo trouxe mudanças: Iván Fresneda, já amarelado, deu lugar a Georgios Vagiannidis, estreante que precisou apenas de alguns minutos para deixar marca. Subiu pela direita, recebeu em velocidade, cruzou rasteiro, e encontrou novamente Ricardo Mangas, que encostou para o 4-0. O segundo bis da noite. Os reforços, cada um à sua maneira, exibiam-se como protagonistas.
A meio-campo, Morten Hjulmand e Hidemasa Morita continuavam a sustentar a fluidez, mas era Debast quem, desde trás, tomava conta da construção. Os passes rasgavam linhas, filtravam para Trincão e Pote, permitiam que o Sporting jogasse sempre de frente. Com Suárez a servir de pivô, a arrastar marcadores, o quebra-cabeças para a defesa do Arouca era total.
Quenda entrou e, em poucos minutos, fez duas assistências. Primeiro encontrou Suárez, que se virou e disparou cruzado de pé esquerdo, um remate indefensável que selou o 5-0. Mais uma vez, a perceção de espaço do colombiano foi decisiva: recebeu já a pensar na execução e não falhou.
O Arouca ainda respirava com bola, é verdade, mas nunca conseguiu incomodar no último terço. Faltava-lhes peso ofensivo, sobretudo depois da expulsão. O jogo estava, claramente, sentenciado.
Com tanta margem, Rui Borges deu minutos a ConradHarder, Giorgi Kochorashvili e Alisson Santos. Harderentrou com a habitual vontade — talvez demasiada, como se o discernimento ficasse para segundo plano.
Ainda assim, as novidades continuavam a multiplicar-se. Vagiannidis estreara-se com assistência, Quenda registava participação ativa no marcador, e Mangas confirmava que a sua chegada à área não é acaso, mas característica.
E ainda faltava outro de Trincão. Aos 76 minutos, no meio da confusão após canto, o canhoto apareceu de novo. Um remate de instinto, de quem sabe o que fazer no instante certo, e o 6-0 estava consumado. Era a noite dos pares: Mangas, Suárez e Trincão, todos com dois golos.
A partir daí, o jogo caiu de ritmo. O Sporting trocou a bola em segurança, geriu o tempo, deixou-se embalar pelos cânticos. O Arouca, digno até ao fim, ainda tentou rematar de longe, mas Rui Silva foi mero espectador.
No fim, o que ficou não foram apenas seis golos. Ficou a certeza de que o Sporting, bicampeão, mantém a fome intacta. Ficou a imagem de Debast, maestro na construção; de Suárez, predador e engenheiro de espaços; de Mangas, lateral com alma de avançado; de Trincão, protagonista e não coadjuvante. Ficou também a consciência de que há ainda espaço para reforçar o lado esquerdo, para acrescentar soluções e tornar o ataque menos previsível.
Alvalade mudou: desapareceu o fosso, surgiram novas bancadas, novos lugares de proximidade. Mas a essência mantém-se: um clube que vive da ligação entre equipa e adeptos. Nesta noite, os golos foram a ponte. O betão que cobriu o vazio transformou-se em celebração.
E no primeiro grande espetáculo do novo estádio, o Sporting deu ao público aquilo que ele queria: a prova de que a equipa não só regressou a casa, como tambémtrouxe consigo a promessa de continuar a reinar.

O avançado colombiano viveu uma noite de estreia plena em Alvalade. Depois de já ter estado na génese do golo inaugural — ao disputar a bola com o guarda-redes e permitir a sobra que Ricardo Mangas aproveitou — assumiu o protagonismo na marca de grande penalidade que valeu o 2-0. Frio e calculista, bateu João Valido com um remate colocado, o primeiro com a camisola do Sporting. Sempre ligado à corrente ofensiva, Suárez mostrou intensidade na pressão, inteligência na movimentação e uma leitura de espaços que baralhou a defesa do Arouca. A sua exibição culminaria com um remate fulminante na segunda parte, que fixou o bis e confirmou a sua veia goleadora. Foi um jogo de afirmação clara, em que deixou a promessa de ser muito mais do que apenas finalizador: um avançado capaz de dar linhas de passe, criar rotas e decidir.
Texto: Raúl Saraiva
Imagens: @SportingCP