Ouvi, certo dia, uma entrevista feita à “Rainha do Fado”, como é muitas vezes
carinhosamente apelidada Amália Rodrigues.
Disse, já com um certo pesar na voz, talvez pelo passar dos anos, talvez pela dor
que acompanha, como um fantasma, as suas canções, que é uma pessoa bastante
realista. O jornalista apenas lhe tinha perguntado se ela era feliz.
Vi-lhe nos olhos uma certa sombra, nos lábios um certo trejeito. Disse que as
duas coisas conseguiam coexistir, mas que a realidade, às vezes, ofusca a felicidade. Vi
como aquela pergunta lhe parecia leve, digerida e pensada várias e várias vezes.
Consegui observar-lhes as noites em branco, a pensar na vida, ou talvez tenha visto as
minhas. Como num espelho por cima da cama, preso ao teto em realidades
completamente distintas, um lá na casa em S. Bento, e outro sobre a minha, bem longe
de Lisboa, se refletiam dois corpos similares, dois olhos delineados a preto, um par de
lábios tingidos de vermelho. E um fado. Ela a cantá-lo e eu a escrevê-lo.
Viajei mentalmente para o início do ano, para a minha primeira leitura de 2024;
uma biografia romantizada da vida da fadista, da autoria de Sónia Louro, intitulada de,
“Amália, o romance da sua vida”. Compreendi, ao virar a última página, que depois de
tantos anos, o seu legado permanece ainda vivo, a florir como as flores de que Amália
tanto gostava de receber e de depositar aos pés dos santos solitários que encontrava
pelas ruas. O seu legado, acima de tudo, transpôs a validade do seu corpo. A sua voz
continua a sair do auscultador do meu telemóvel, numa gravação que tenta capturar a
magnificência que certamente deveria ter sido ouvi-la nos serões em Alfama. Os seus
discos continuam a ser vendidos, mesmo que ela já cá não esteja para os autografar.
Fala-se nela, celebra-se o que ela era; uma imagem de Portugal, uma imagem da Lisboa
antiga, a voz de um povo que devotamente lhe bebia as palavras, que transpunha
fronteiras e que até quem não compreendia uma palavra que lhe saía da boca, rebentava
em aplausos. E 25 anos depois da sua morte, ainda o é, Amália de Portugal, a Rainha, a
Diva.
Mas eu olho para ela e não me parece apenas isso; parece-me algo ainda mais!
Algo só meu. Algo que me acompanha na solidão das noites longe de casa, que me
ancora a algo, que caminha ao meu lado, cantando sobre o maior sentimento português,
a saudade. A sua voz magnética, o seu aspeto pesado e sofrido, de braços estendidos e
de cabeça atirada para trás, com lágrimas miudinhas escondidas pelas pálpebras,
continua vivo. Ela continua viva. E inspira-me, como certamente tem vindo a inspirar
tanta gente. É como uma amiga de infância, que conhece tão bem o outro, que percebe e
transcreve com a sua voz o que lá vai no coração de quem a ouve.
E 25 anos depois da sua morte, ainda canta e encanta. Pintada em muros, citada
em livros, exposta em museus e, acima de tudo, nos corações que melancolicamente
conseguiu arrebatar e tornar seus, Amália vive e recusa-se a morrer.
Inês Brito