Não é graças ao fator casa de 1964, nem ao brilhante tiki-taka de 2008 e 2012, mas é, ainda assim, com muito mérito que a Espanha se assume como o primeiro finalista do Euro 2024 e dá força à sua candidatura a um quarto título! Será um máximo na competição, caso se confirme, mas esta seleção tem um talento muito próprio para chegar aos recordes…
Perante a França, tão habituada a conseguir resultados positivos a partir de exibições negativas, “La Roja” voltou a apoiar-se na verticalidade e no futebol ofensivo e venceu por 2-1, após reviravolta. Lamine Yamal, o mais jovem a marcar na história da competição e Dani Olmo, o primeiro jogador a faturar em três jogos consecutivos a eliminar, voltaram a ser heróis, como já tinham sido na ronda anterior.
Obrigado a mexer devido a castigos, De la Fuente lançou os veteranos Jesús Navas e Nacho Fernández na defesa, além de Dani Olmo no miolo, enquanto Deschamps optou pelo regresso de Rabiot, tendo colocado Ousmane Dembélé na direita do ataque, em detrimento de Antoine Griezmann.
Não obstante as celebrações após a conclusão do jogo, a meia-final não poderia ter começado pior para Espanha. O grande problema contra França é ter de correr atrás do prejuízo, legitimar o plano de Deschamps de defender-se atrás e esperar, dar espaços para o contra-ataque. A grande dúvida de “La Roja” era o lado direito, a capacidade de Jesús Navas aguentar, que se revelou pouca, perante tamanho poderio ofensivo.
A verdade é que, nos seus primeiros cinco jogos no Campeonato da Europa, a seleção francesa não conseguiu ir além de um mísero total três golos. Dois autogolos e uma grande penalidade, em nome da especificidade. É esse o registo de uma equipa que chegou às meias, eliminando Portugal.
Mesmo sendo o único jogador com um golo registado em seu nome, Kylian Mbappé era, ainda assim, um dos motivos por detrás da seca coletiva. A forma do capitão oscilou desde a chegada à Alemanha e houve mais alarido em torno da escolha da máscara de proteção do que propriamente em torno das suas exibições. Não era o ideal, num verão em que se prepara para conquistar uma nova cidade…
Mas quando Mbappé entrou no relvado da Allianz Arena, esta terça-feira, algo de diferente o acompanhou. O que não o acompanhou foi a tal máscara, que caiu antes dos “les bleus” marcarem: o homem mais perigoso em campo no arranque do jogo dançou sobre Navas – talvez não se arriscasse a largar a proteção se o rival fosse Carvajal… – e fez o cruzamento perfeito para Kolo Muani assinalar o 1-0.
Parecia ser a noite de Mbappé, mas o domínio do gaulês não durou mais do que 20 minutos. O rendimento do camisola 10 francês foi ultrapassado pelo de vários companheiros, num jogo em que a Espanha conseguiu reentrar e virar do avesso.
Isto porque um rapaz que está no secundário decidiu que o guião do desafio poderia ir por um lado, mas o resultado iria para outro.
Lamine Yamal, extremo do FC Barcelona, recebeu à entrada do último terço, bailou diante de Rabiot, rematou, um tiro que primeiro subiu, subiu, mas subitamente desceu, como se alguém sussurrasse ordens à bola. Ela, obediente perante o talento, obedeceu. A estirada de Mike Maignan só acrescentou estética ao momento.
O que era frágil tornou-se forte. A debilidade de Espanha transformou-se entusiasmo, voando nas asas de alguém que não pode beber, não pode fumar, não pode conduzir, mas pode ter este impacto numa cimeira de gigantes. No Euro 2036, quando sabe-se lá que invenções tecnológicas haverá, quando sabe-se lá em que mundo viveremos, Lamine Yamal ainda não terá 30 anos. Tudo isto, se fosse guião de filme de Hollywood, pareceria excessivo exercício de criatividade.
Embalado pelo golo do companheiro, Dani Olmo juntou-se à arte. Desde que teve a oportunidade aberta pela lesão de Pedri contra a Alemanha, vai em dois golos e uma assistência. Tirou um adversário da frente com um toque de classe e rematou cruzado (a bola ainda tocou em Jules Koundé antes de entrar na baliza) para fazer o 2-1.
Ainda só estavam decorridos 25 minutos, mas parecia um jogo inteiro tal a qualidade que nos foi apresentada esta noite em Munique. Como nem tudo são rosas e os jogadores não são de ferro, não houve mais oportunidades claras de golo, até porque as equipas não queriam desmontar o seu tabuleiro de xadrez.
Sem alterações ao descanso, a França tinha dificuldades em chegar com perigo ao último terço, apesar das melhores tentativas de Dembélé e Mbappé. Tal era a pressão que Navas, de 38 anos, não aguentou uma hora de jogo e foi substituído devido a dificuldades físicas. O melhor que os “bleus” conseguiram foi um cruzamento traiçoeiro de Dembélé que Simón quase desviava para a própria baliza.
Deschamps não teve meias medidas e fez três alterações de uma assentada, lançando Griezmann, Camavinga e Barcola, abdicando de dois médios, Kanté e Rabiot, e do marcador do golo, Kolo Muani. No entanto, a Espanha manteve-se à distância de surpresas, controlando a posse de bola e os ataques adversários. Ainda assim, uma jogada de insistência deixou a bola à mercê de Theo Hernández, tendo valido aos espanhóis o facto de o pé direito do lateral não ser tão afinado como o esquerdo, pelo que a bola só parou na bancada.
Olivier Giroud também entrou para a frente, formando uma França cada vez mais virada para o ataque. No entanto, sem muita criatividade e alta dependência das tentativas individuais dos seus extremos, o perigo só chegou em meias oportunidades, ameaças de Mbappé, Barcola, Upamecano ou Theo, esboços desgarrados que não pareciam contrariar a gestão que os espanhóis faziam da vantagem.
De facto, nada abalou a equipa comandada por Luis De La Fuente, que guardou a vantagem até ao fim e festejou um lugar na final, sendo, ao que tudo indica, a grande favorita à conquista do troféu!
A França caiu, assim, de forma tristonha, culminando num Europeu algo triste ao nível do futebol apresentado. Deschamps foi, neste torneio, mais Deschamps que nunca, mais conservador, amarrando demasiado a equipa a funções que não lhe pertencia nem a beneficiava.
Homem do jogo – Lamine Yamal
Futebolisticamente falando, o extremo do Barcelona é um dos maiores diamantes em bruto que já vi. Dentro do corpo de um adolescente, que inclusive teve de terminar os estudos por entre as pausas deste Europeu. Ainda nem carta de condução tem e anda a “partir a louça toda”. Tão bom ver esta irreverência sensacional. O regresso ao futebol de rua, do drible, do desafio, do risco. Levou com provocações de adversários e demonstrou uma frieza que impressiona. Para além de ter já uma grande maturidade competitiva, respondeu às críticas e dúvidas no único sítio possível: dentro de campo! Brilhante!
Texto: Raúl Saraiva
Imagens: UEFA