Vivemos, subsistimos, somos – Existimos. Temos a perceção plena do tempo e do espaço por meio dos nossos sentidos. Somos homens e mulheres que buscam sentido e clareza na face de um mundo ininteligível cuja existência faz da dor e felicidade as memórias e as aprendizagens desta efémera caminhada terrena. Em tempos de dúvida, o conflito, a guerra e o vírus vêm, e a janela da razão e do senso inevitavelmente se abre. Convido-o, deste modo, a uma breve reflexão sobre o que nos rodeia; sobre nós.
Vidas é o que eterniza a nossa presença e passagem neste mundo. Passamos os dias na esperança do amanhã e depositamos a nossa força na execução cíclica e quotidiana, numa “eternidade finita”, das mais diversas tarefas. Arrebata-nos o hábito o ano de 2020 e 2021, sem romper com a extensão rotineira da nossa condição, mas trazendo à luz da evidência, múltiplos questionamentos no que respeita a valorização do cansaço e da produtividade daqueles que acordam antes do sol raiar, da animosidade e cólera que nos caracteriza. Despertam-se as gentes com o ato de guerra (tal como nós, caro leitor) que silenciosamente, e mortiferamente, obrigam-nos a recordar a terra que tolera as nossas frutíferas hostilidades e a preponderância da nossa existência.
Perante a crescente tomada de consciência do que nos rodeia, e do quão mecanizados chegam a ser os nossos movimentos, pensamentos e relacionamentos, perguntamo-nos onde podemos então desvendar a nossa essência e como devemos transmutar a nossa visão do mundo face a uma conjuntura pandémica e civilizacional que nos desperta do sonambulismo da vida costumeira; assim, creio que podemos pensar e possivelmente responder (e porque não?): nas Estrelas. Vivem submersos nas suas inquietações, aqueles que se esquecem de que correspondem a uma existência microscópica movendo-se gravitacionalmente entre corpos celestes que derivam na infinita dimensão do espaço universal. A expansão universal é, deste modo, um exemplo sublime: o todo difundindo-se em território de coisa alguma; o nada abarcando o todo que se dispersa no seu espaço. Assim, guerreiam os homens iludidos sobre o que são, à semelhança daqueles que se esquecem de si mesmos, emersos num mar de preocupações e frustrações frente a um adversário invisível.
Nos dias em que a noite se liberta do enevoamento, as constelações revelam-se numa mancha composta por milhares, milhões e bilhões de ínfimos pontos luminosos. O nosso olhar ergue-se para o firmamento. Uma vez que nos embrenhamos em tal grandeza, que ultrapassa tudo aquilo com que sofremos ou com que nos felicitamos na crença de que é único e que nada se estende além disso, vivemos. O vírus existe, o confinamento que se materializa nas paredes da nossa casa existe, a frustração, o distanciamento e a raiva também existem; mas veja-se para além disso. Observemos a magnificência sobre nós. Olhemos para além do que nos consome e nos limita e admiremos a alma do que longinquamente nos rodeia e envolve. Tudo Existe; Isto e Aquilo. Uma realidade por cima de outra. Somente a lucidez da nossa condição e a prática da arbitrariedade que nos é atribuída, nos faz quebrar as correntes do que nos aprisiona, permite-nos ser o que realmente queremos e devemos ser, e dá o sentido que tão incessantemente procuramos.
O despertar encontra-se, assim, limitado às divisas da nossa cegueira, à quimera escura que permeia o pensamento. Somente cada um de nós se pode libertar na sua totalidade, possibilitando uma saída coletiva e definitiva do lamaçal da nossa ignorância e incerteza. Perante o mal, o medo e a dúvida, esta será a nossa única e simples saída: afastemo-nos de nós mesmos e contemplemos o todo que nos rodeia, distinguindo na massa amórfica, o complemento etéreo da nossa existência – a nossa essência.
Salomé Gonçalves