Ao que se segue não lhe consigo atribuir um género textual para além do desabafo. É provavelmente o tema mais sensível que alguma vez conhecerei. Apesar de não ter sido teu contemporâneo, meu amado Zeca, cada vez que o teu nome vem à baila cessam-me as palavras e as forças dando lugar às lágrimas. Embora tenhas partido há 33 anos, ainda não consegui superar o teu adeus, a ideia que nunca irei conseguir dar-te um abraço por tudo o que fizeste por mim, por tudo o que fizeste por nós.
Não se trata só de ideologia política, não se trata só de te idolatrar, não se trata só de teres sido um dos homens de abril, não se trata da música nem do poeta. Está muito acima disso. Devido ao que te aconteceu, desacredito as divindades espirituais, no entanto, não encontro no teor humano explicação para aquilo que foste e continuas a ser.
Sabes, Zeca? Onde queres que estejas, foste a primeira e única pessoa que eu idolatrei. Foste a primeira pessoa que chorei de forma compulsiva enquanto absorvia os recitais poéticos que proclamavas. Nessa altura, eu ainda não compreendia a complexidade das metáforas, a imensidão do significado das tuas palavras e, muito menos, a tua dimensão enquanto artista, enquanto homem e enquanto ícone.
Hoje, com 19 anos, teimo em dizer que dificilmente criarei um amor tão puro e em tamanhas proporções por alguém como aquele que criei por ti. Apenas no dia em que possuir um descendente nos meus braços poderei provavelmente sentir um amor maior. Nunca consegui explicar a ninguém a dimensão do mesmo. Não dá para ser explicado. A minha voz fica trémula, as ideias bloqueiam, as mãos escorregam e abrem-se as comportas das minhas pupilas deixando-me o rosto inundado.
Lembro-me como se fosse hoje do primeiro contacto que tive “contigo”. Entrei na FNAC e vi um disco teu, “José Afonso – Ao vivo no Coliseu”. Fiquei histérico. Eu que de poucas graças tento ser, fiquei histérico no meio de um centro comercial com centenas de pessoas, correndo com um disco teu na mão. Sentira tudo ao rubro. Aquele momento marcava a minha vida de uma maneira que eu não podia imaginar. Era como se tivesse a maior preciosidade do mundo nas minhas mãos. Não o largava nem por nada. Podiam-me ter oferecido o mundo naquele momento que eu ficava com a tua melodia. Ainda hoje, cada vez que te ouço, pareço um puto com os olhos a brilhar e a lágrima a acariciar-me a face. Já viste, camarada? Foste o homem da revolução, o homem que mudou mentalidades inflacionadas pela tirania fascista e hoje continuas a pôr um rapaz de um metro e oitenta e pouco a chorar como se fosse um menino.
Já me fizeste passar por alguns momentos caricatos, sabes, Zeca? O verão passado foi um deles. Estava eu, com a nossa bandeira rubra ao vento, em plena Festa do Avante, quando colocam uma das tuas melodias mais belas e, certamente a mais popular, a “Grândola Vila Morena”. Tenta só adivinhar o que é que aconteceu, companheiro. Exatamente! Mais uma vez, sem eu conseguir sequer perceber, inicio uma choradeira ínfima sem fim à vista
Recordo-me que em 1983 dizias algo como “(…) o nunca desmentido, o PREC, o assumido, sempre assumido PREC (…)”. Estas palavras ainda hoje me fazem pensar muito. O termo hoje é vulgarizado, mas numa época de tiranismo governativo, de censura e enclausuramento ideológico, o termo Processo Revolucionário em Curso era algo que deixava de pernas a abanar o “coitadinho do tiraninho”. Não é fácil uma frente popular deixar um sistema governamental fascista completamente aterrorizado. Naquela altura lutava-se por aquilo que se acreditava, o pensamento era valorizado e, independentemente dos custos, eram levados avante os processos de libertação da nação.
Hoje limitam-te a uma ideologia, a uma opção partidária. O que eles não sabem é da tua humildade. Vindo de uma família burguesa, recusaste a entrada no partido dizendo que o PCP é um partido do povo e que, apesar de seres um apoiante dos seus ideais, sabias que não tinhas passado pelo esclavagismo do patronato, o que tornaria hipócrita a participação ativa nas suas ações. Eu, apesar de comunista, não me resumo somente a isso. Mais do que apaixonado por Marx e por Lenine, mais do que um assumido apoiante do comunismo, sou um maior humanista. Considero inglório, resumirem a libertação do campesinato e do proletariado à tirania estalinista e ao assassínio de Mao Tsé-Tung. Eu não me revejo em tais atos, não me revejo em Gulags e muito menos em censura. Revejo-me, sim, na libertação popular que reivindicamos. Em qualquer teoria são necessárias revoluções adaptadas aos povos, mas esta é uma palavra que faz muita comichão social, “REVOLUÇÃO”. As escritas de Marx são do século XIX e é claro que em pleno século XXI não são corretas, necessitam de reformulações. No entanto, estes são “maus a dar razão a alguém” e preferem basearem-se nos mesmos factos.
Numa altura de tanta perseguição, homens de fibra são olhos em terra de cegos. Foram pessoas como tu, como o camarada Cunhal, como o capitão Maia, como Catarina Eufémia que me permitem, nos dias de hoje, escrever da maneira livre que escrevo. Jamais existirão palavras suficientes para vos agradecer, principalmente a ti meu estimado e amado Zeca. Sempre tive uma ligação muito forte com as tuas palavras. Talvez por nunca ter conhecido o meu avô, um apoiante e um difusor do PCP, quando Salazar não vos deixava sê-lo.
Já passaram 33 anos desde a tua partida, desde que a Esclerosa Lateral Amiotrófica te tirou a vivacidade que possuías. Ironicamente, com uma foice, a morte desviou o teu trajeto da nossa pouca astúcia meramente humana. Desde que me lembro que a sofro, a morte é um tabu muito forte. Contudo, não tenho a mínima dúvida. Trocava 20 anos da minha vida por um dia contigo à volta de uma mesa. Por uma noite de cantorias. Por uma tarde de histórias e um dia da maior felicidade que jamais poderei sonhar. Nesses jardins suspensos em que te encontras, camarada, dá um abraço ao meu avô e diz-lhe que a nossa bandeira rubra será erguida e a nossa luta vingada. Será elucidado aos povos o verdadeiro comunismo e não a tirania de outrora. O amor que sinto por ti, meu estimado e amado Zeca, só pode ser refletido naquele que sinto pelos meus progenitores. É algo inexplicável. Espero ansioso pelo dia em que nos iremos encontrar.
Dizias numa das tuas melodias, “Cidade / Sem muros nem ameias / Gente igual por dentro / Gente igual por fora (…)”. Este sempre foi o nosso sonho, a nossa verdadeira utopia. Um sonho simples chamado igualdade. Provavelmente não viverei tempo suficiente para o ver cumprido. Hoje, a tua maior luta, a maior luta do meu avô e de tantos outros com a fibra necessária (dada a dificuldade da época), é muitas vezes desvalorizada. Não se lembram que esse é, verdadeiramente, o acontecimento mais belo e humilde da nossa nação nobre e imortal.
No entanto, há uma coisa que não te podem tirar. Numa simples frase, dizias assim, camarada: “O povo é que mais ordena, dentro de ti ó cidade”. A verdade mais pura resumida à frase mais simples. Zeca hoje e sempre. OBRIGADO, CAMARADA.
Filipe Reis